As flores da Condessa

 Do livro 

MATER PURISSIMA: Histórias da Festa de Conceição em Abaeté do Tocantins (Prêmio Dalcídio Jurandir de literatura da Fundação Cultural do Pará)

 

      Começava a escurecer. A noite caía naquela lentidão  tropical que fazia dessa hora uma das mais tristes e  nostálgicas do dia. Hora para amarrar uma embarcação  à margem de um grande e melancólico rio e quietar-se.  Hora de contemplar a imensidão da planura, quando  as primeiras luzes se acendiam nas casas distantes,  demarcando existências, dores e alegrias.
    Dois homens viajavam lentamente de bicicleta por  uma estrada de terra, contornando uma pequena elevação  descampada. A estrada já obscura refletia nas poças de água de uma fresca chuva da tarde as nuvens brilhantes  que ainda luziam a grandes alturas. Era um refrescante fim  de tarde em maio. Mês das flores.
    – Agora serão de plástico… – comentou Dr. Novaes.  Quando pedalava falava pouco. Talvez fosse o parco  fôlego, rarefeito pelos charutos cubanos. Talvez fosse o  terno pouco confortável para o pedalar. Talvez fosse típico  de um homem taciturno, para quem a experiência de andar  de bicicleta era mais espiritual do que física.
    – De plástico… – disse seu Libório, o farmacêutico que  era o presidente da comissão que organizava a Festa de  Conceição naquele ano. Libório também falava pouco, mas estava incomodado  pela melancolia e solidão da viagem na tarde que findava.
    – Dizem que é melhor… – completou. – Já vêm prontas  de São Paulo; na verdade da China. São perfumadas,  duráveis, podemos ganhar um bom dinheiro vendendo  todas como lembrança depois da Festa. É novidade…
    – Novidade… – disse Dr. Novaes num muxoxo. –  Sempre a busca pelas novidades… Soube que a dona  Catarina está indignada. A promessa de fazer as flores do  andor todo ano não vai mais poder ser paga… – completou  meio sarcástico.
    – Essa promessa foi paga durante décadas – disse  Libório com certa impaciência. – Depois que a sobrinha  dela foi estudar enfermagem em Belém ficou difícil para  ela fazer todas as flores… Vamos inventar uma tal coroa
de flores para uma menina do colégio das irmãs sair  carregando na frente do andor. No começo será sempre a  dona Catarina quem fará a tal coroa. Depois vamos abrir  concurso, coletar doações, fazer disso um evento. Vamos  apelar para a nostalgia, contar a história da promessa, fazer  e acontecer. No fim, as flores serão mesmo de plástico…
    Calaram um pouco quando já avistavam de longe a mansão da Condessa sobre uma elevação baixa. Muitas janelas, dois pavimentos e algo como uma torre inglesa se projetando do telhado.
    – Ela não é de muita conversa… – disse Libório, inquieto pela visão da estranha casa que, no silêncio da tarde que caía, lembrava uma história de terror. –Felizmente o amigo é o médico dela… – completou irônico.
    – E quem não precisa de médico nessa idade… – respondeu Dr. Novaes.
    – Uma mulher excêntrica… – disse Libório.
    – Excêntrica e talvez um pouco insana. Um tipo de neurose muito curiosa por estas bandas…
    – Lá vem você com esses arroubos freudianos…
    Doutor Novaes riu; quase gargalhou. Depois falou, ainda sorridente.
    – Na Viena da virada do século, pessoas desse tipo, do tipo da Condessa, eram comuns. Serviram de objeto de estudo para o velho barbudo. Aqui…
    – Mas o que ela tem de tão diferente, afinal…? – perguntou o farmacêutico, falando mais baixo intimidado pela aproximação da enorme casa.
    – Você verá… – disse o médico descendo da bicicleta. – Ah… – lembrou-se falando baixinho. – Quando fomos sair, depois da visita, não estenda a mão para ela… Apenas a cumprimente com um gesto qualquer…
    Foram recebidos por uma criada tensa como um arco de tiro, em pé no alpendre, vestindo um uniforme de cambraia azul e avental imaculadamente branco.
    – Ela espera os senhores – disse a criada abrindo a porta principal, por onde os dois entraram devagar.
    Libório olhou espantado para o salão de tábua corrida, paredes muito altas e cortinas de veludo cor de vinho. Tudo parecia imaculadamente limpo e arrumado, como se a faxina tivesse acontecido há poucos minutos e o lugar de cada objeto estivesse milimetricamente predeterminado, numa harmonia estranha e inquietante; como se ali o universo tivesse atingido a perfeição da criação, um estado de calmaria absolutamente incomum no mundo normal dos vivos que pulsava fora dali em toda a sua impermanência e imperfeição.
    – Ela os receberá no quarto íntimo. Venham esperar na alcova… – disse a mulher os conduzindo para dentro.
    Enquanto a criada avançava diante deles, uma sensação perturbadora dominava o farmacêutico.
    – Fique tranquilo… – disse Dr. Novaes baixinho. – Também fiquei incomodado quando vim aqui pela primeira vez. Nada ruim acontecerá, mas o mais perturbador está lá no quarto íntimo…
    – Quer que eu espere na sala…? – disse Libório.
    – Você é o presidente da festa… – comentou Dr. Novaes sorrindo.
    Libório enxugou o suor que brotava abundante da testa branca e gorda. Guardou o lenço amassado no bolso do paletó quando chegaram na alcova.
    Era uma sala como a grande na entrada, só que bem menor, como a sala de espera para o escritório de um rábula de aldeia muito rico e de gosto duvidoso. Estátuas gregas, samambaias, as cortinas de veludo vinho e as tábuas pretas e amarelas dividiam espaço com um enorme quadro levemente obsceno de algum pintor do século 19. As cadeiras tinham pernas à Luiz XV, douradas com assentos em couro branco tão limpo que Libório achou que jamais alguém havia sentado antes nelas. A criada os deixou e desapareceu por uma porta branca que dominava o centro de uma das paredes. Esperaram pouco tempo. Logo a criada abriu a porta e inclinou-se, fazendo uma mesura reverente e subalterna
para que entrassem.
    – A Condessa os espera… – murmurou curvando-se de forma tão solene que parecia anunciar a presença de um faraó.
    – Venha… – falou baixinho Dr. Novaes.
    Eles entraram e a Condessa estava de pé, no meio da sala, iluminada por uma luz amarelada que descia de um teto muito alto. Estava de pé ao lado de uma mesa coberta por linho, onde havia um aparelho de chá em porcelana. Era alta, cabelos brancos, e vestia-se como uma dama inglesa do século 19. Logo após a entrada dos dois, ela sorriu e serviu-lhes o chá em faiscantes xícaras inglesas. Usava um vestido longo de mangas bufantes e rendas abundantes. Sobre os cabelos presos em coque usava um pente dourado e dos finos óculos de leitura pendia uma delicada corrente dourada que contornava o pescoço parcialmente coberto.
    – Venham, senhores… – disse baixando bule. – Vamos começar nosso encontro com o chá…
    Um carrilhão bateu as cinco horas. Doutor Novaes tirou o relógio da algibeira e conferiu sorrindo.
    – Precisão Suíça… – comentou. – Exatamente cinco horas!
    A Condessa sorriu.
    – Aqui gosto de ser exata e precisa… – disse.
    Ficaram em silêncio tomando o chá, deliciosa e perfumada infusão que o farmacêutico jamais havia provado. Ele, enquanto bebia devagar, observava. O quarto não era muito grande, mas era extremamente alto, ocupando talvez três andares de uma casa comum. Era a torre que viam de fora e que parecia uma   excentricidade inglesa. Era iluminado por um telhado de vidro levemente amarelado que ficava no centro. Havia dezenas de armários até às alturas e diante deles passarelas com grandes de ferro. Com a ajuda de escadinhas com rodas que corriam por canaletas em cada passarela, era possível acessar qualquer porta, em qualquer altura. Notando o interesse do farmacêutico, a Condessa
comentou.
    – Este é o quarto da minha vida. Foi presente do meu falecido marido – disse olhando as paredes. – Desde pequena, – continuou, – sempre gostei de guardar minhas coisas com muito esmero. Aqui estão guardadas todas as minhas coisas. Minhas fraldas e cueiros, o umbigo, vestidinhos, a roupa do batizado, da primeira
comunhão e o vestido de noiva. Oh – disse sorrindo como dama inglesa – não apenas os especiais, mas toda a roupa que já vesti está nesses armários. Também os brinquedos, os livros escolares.. Meu marido brincava, dizendo que
quando estes armários estivessem cheios seria a hora da minha morte…
    – E eles já estão…? – murmurou Libório um segundo antes de perceber a indelicadeza.
    – Já… – disse a Condessa sorrindo enquanto baixava a xícara e secava suavemente os lábios com um lenço imaculado.
    – Oh! – interrompeu o médico com discreta bajulação. – Como se eu não conhecesse a saúde de minha mais ilustre paciente…
    – Bem, senhores, vamos ao que interessa! – disse a mulher levantando-se. – O doutor me falou das flores…
    – Flores de plástico importadas do oriente! – exclamou Libório. – Belas e perfumadas, como nunca ofertamos para nossa padroeira… – completou.
    Ao lado do aparelho de chá havia uma pasta de couro marrom. A Condessa a abriu em silêncio e dela apanhou uma caneta tinteiro azul turquesa, com anéis dourados, e um livro de cheques. Colocou os óculos de leitura com uma elegância incomum naquelas bandas, curvou-se e preencheu um cheque. Destacou a folha, retirou os óculos e levantou-se.
    – Sabem, senhores – disse caminhando para o centro do quarto. – Esta é minha primeira doação em muitos anos…
    Ela se virou e, iluminada por lâmpadas cuja luz amarelada descia de perto do telhado, encarou os visitantes. A luz provocava um estranho efeito nela, deixando-a ainda mais branca e com uma aura reluzente ao seu redor. Parecia
uma aparição em um antigo castelo inglês.
    Libório sentiu um calafrio, um medo profundo que a muito custo conseguiu dominar.
    – Espero que esta modesta contribuição – continuou solene – seja para alegria da festa e louvor à Virgem…
    Os visitantes, empolgados pelo tom formal do breve discurso, levantaram-se juntos. A Condessa caminhou até eles e entregou-lhes o cheque.
    – Espero que baste… – disse.
    Libório apanhou o papel com mão trêmula e mal pôde acreditar no valor que estava escrito. Talvez em dez anos a festividade não arrecadasse tanto dinheiro.
– Senhora… – murmurou o farmacêutico. – Somos profundamente gratos pela oferta… – completou guardando o cheque na carteira que tirou do paletó, meio
atordoado, já imaginando tudo o que fariam com aquele dinheiro.
    – Bem, – interrompeu Dr. Novaes – vamos embora, então.
    Como se estivesse escutando do lado de fora, a criada apareceu novamente, ficando em pé diante da porta aberta à espera de uma ordem.
    – Tenham uma boa noite… – despediu-se a Condessa sorrindo, juntando as mãos sobre o peito.
    Os dois curvaram-se como se ali estivesse a rainha da Inglaterra. Seguindo a criada, atravessaram devagar a alcova, passaram pela grande sala da entrada e pela porta principal que já estava aberta, parando um pouco no alpendre. Dr. Novaes virou-se.
    – Não esqueça do estramonium à noite… – disse à criada. – E o licopodium pela manhã em jejum…
    Ela assentiu com um movimento da cabeça e retirou-se, fechando a porta.
    Os dois apanharam as bicicletas e saíram pedalando pela estrada, àquela hora já completamente escura, mas suavemente iluminada por um céu claro que permitia reconhecer quase que intuitivamente o caminho. Pedalavam deixando para trás a mansão da Condessa faiscando na colina e já vendo as luzes de Abaeté brilhando sobre o horizonte, atrás de uma capoeira rala.
    Depois de algum tempo em silêncio, ainda atordoado pela forte impressão da visita e pelo valor do cheque, Libório afinal falou.
    – Mulher estranha… – comentou olhando o céu.
    Doutor Novaes apenas sorriu. Depois comentou.
    – O mais impressionante o amigo não viu…
    – Que era… – indagou Libório.
    – Ela guarda também suas extrações cirúrgicas, unhas cortadas, dentes, cabelo cortado… Tudo em potes lacrados. Debaixo do quarto há uma fossa. O único sanitário que ela usa despeja os excrementos nessa fossa…
    – Deus do céu… – murmurou Libório.
    – Ela jamais saiu de casa desde que o marido morreu. Antes já saía bem pouco…
    – Quem era ele? – indagou o farmacêutico.
    – Tabelião da cidade. Também se metia quando havia uma querela na justiça. Era meio rábula… Muito rico… Ele a conheceu em Belém numa viagem e a trouxe para cá. Uma mulher metida a nobre, que acha que os que estão la embaixo na cidade são uma gentalha que não merece nada dela…
    – Mas deu as flores para a santa… – ironizou Libório.
    – Pro amigo ver como são as coisas…
    – Quando ela veio para cá trouxe todas as coisas do quarto? – perguntou Libório mais uma vez.
    – Oh, não – disse o médico num muxoxo. – Os armários são um delírio… Ela montou tudo aquilo, comprando as coisas secretamente. Arranjou um umbigo de uma menina falecida no hospital das irmãs. Quando o delírio completou-se, ela passou realmente a guardar tudo nos armários, acreditando na sua própria fantasia. Para o amigo ter uma ideia, aquele relógio que bateu na hora do chá das cinco sempre bate as cinco horas quando ela vai tomar o chá, seja a hora que for. Certa vez tomamos o chá das cinco às nove da manhã, com o relógio soando feito o big-ben… Um delírio inglês, certamente… Não sei como ela faz isso… Em
Belém, fora cocotte de um coronel de barranco e sofrera muito ao ser trocada por uma polaquinha de 13 anos. Talvez o delírio tenha começado aí… Agarrou o tabelião como tábua de salvação…
    – Mas… e o título de Condessa? – disse o diretor da festa. – Ela tem algum ancestral nobre?
    O médico pigarreou. Pedalou mais devagar para que os dois se aproximassem e falou baixinho.
    – Era o nome dela na zona do meretrício em Belém…
    – Jesus Cristo… – espantou-se Libório.
    Depois, calados, prosseguiram até a cidade que já ressonava em silêncio. Libório dormiu mal naquela noite.


Do livro 

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