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Mostrando postagens de abril, 2021

A última sessão de cinema

  Aquela era a última noite da família na cidade. Carmem terminava de arrumar os livros da imensa biblioteca do avô dentro de caixas de cedro para o transporte até a nova casa, na capital. Todos eram mobilizados, dividindo as tarefas que envolviam desmontar móveis e transportá-los até o vapor atracado no que restara do porto velho da cidade, encaixotar livros, roupas e o conteúdo da cristaleira da sala - envolvendo cada peça de porcelana em camadas e camadas de jornais velhos. O grande lustre de cristal faiscante foi baixado do centro da sala e cuidadosamente desmontado, indo parar dentro de um caixote exclusivo. Cortinas eram removidas e dobradas para serem embaladas junto a centros de mesa bordados e sóbrias toalhas de linho e renda. Aproximava-se as oito horas e serviriam o último jantar naquela casa, assim mesmo, por sobre caixotes e engradados; as crianças comendo deitadas de peito sobre o chão polido de tábua corrida cheirando a cera de carnaúba e gasolina. Quand

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 4

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 Perfume de Jasmins Esta crônica saiu meio sem querer. Estava procurando outra coisa e, ao revirar meu arquivo de imagens históricas, encontrei esta fotografia. Parei um pouco pensando. A irmã Eufrásia aparece ao lado de uma família e de uma jovem, provável aluna do Instituto Nossa Senhora dos Anjos, o INSA, diante de uma casa. Chalezinho humilde de madeira erguido sobre estacas fincadas em algum terreno distante, tendo a mata por vizinhança, sem fiação elétrica visível nem torneira gotejante. Pedras enormes próximas à parede sugerem um ambiente lunar, paleolítico, agreste. Em ordem decrescente de sorrisos, temos a irmã Eufrásia (aquele sorriso expansivo de franciscana, que sorri até da dor que deveras sente...), depois a menininha de pé à porta, a moça de saia e blusa à esquerda, a senhora sentada na escada de acesso (a dona da casa?), a mocinha à esquerda começando... Os demais, de uma sisudez bovina. Chamou-me atenção a anotação manuscrita no céu, onde são grafadas todas as

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 3

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  SILÊNCIO Lembro que certa vez visitei um balneário em Abaeté que se dizia ecológico. De fato, havia aquelas lixeiras coloridas para coleta seletiva, placas educativas na praia, limpeza em todos os lugares, a natureza preservada. Posso dizer que me senti em casa, feliz por estar ali para apreciar as árvores, ouvir um igarapé indo em direção a um rio mais largo, o farfalhar dos açaizeiros, o canto dos pássaros. Tudo ia muito bem até começarem a montar enormes caixas de som. Vi sobressaltado ligarem os fios naquelas monstruosidades e logo sentei, já tenso, na rede onde estivera deitado em paz, não acreditando no que presenciava. Daí a pouco aquele ambiente bucólico foi inundado por uma barulheira infernal e somente pude me retirar resignado do barracão, indo para bem longe, do outro lado do igarapé, onde fiquei a meditar sobre o que estava acontecendo. Fiz, naquele momento, uma constatação iluminadora: para algumas pessoas, poluição sonora não é poluição. Já sabia que, segundo o mestre

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 2

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  ÁRVORES, TERRA, CHUVA, DENDROFILIA...   Árvores são criaturas extraordinárias. Transformam a energia solar em comida. São capazes de produzir seu próprio alimento. Não falam bobagens, apenas vivem e, se têm alguma consciência do existir, aceitam caladas sua condição vegetal. São usinas químicas maravilhosas, produzindo a partir de água, gás carbônico e energia solar uma infinidade de substâncias, desde a humilde glicose até coisas muito complexas como algodão, óleos e essências. São nossas parceiras fundamentais na sobrevivência. Podemos viver sem um cartão de crédito, sem carros ou roupas de marca. Mas sem água, sem solo fértil e sem árvores, certamente pereceremos. Como disse aquele famoso escritor louvando-lhes a generosidade, nós lhes damos estrume e cadáveres e elas nos devolvem flores e frutos. Estão na base de toda cadeia alimentar e são as responsáveis diretas pela vida na terra. Estas reflexões me vêm à mente diante do drama ambiental vivido pela Amazônia, fatos que são d

Literatura "de periferia"

Literatura regional, identidade e cultura: um diálogo entre a gente de Belém ‘de outrora’ e de ‘Abaeté do Tocantins’ José Ivanilson da Luz Rodrigues, Lais Lauane Gaia Veras Resumo O presente trabalho ocupa-se da literatura regional como forma de empreender uma investigação que demonstre os traços culturais locais presentes nos textos escolhidos: “Mastros votivos de outrora” (in Gostosa Belém De Outrora - De Campos Ribeiro) e “O arraial” (in Mater Puríssima: Histórias da Festa De Conceição em Abaeté do Tocantins - Jorge Machado). Para tanto, recorremos as premissas de BORGES (2010), para quem a literatura apresenta-se como uma fecunda fonte de pesquisa quanto à compreensão das sociedades de cada época, pois no mais das vezes, revela os construtos socioculturais daquela sociedade, e ainda, a forma como o autor lê o seu tempo, e, CARVALHAL (2006), quanto à importância dos estudos literários comparados como metodologia de pesquisa, de forma a inferir semelh

As flores da Condessa

  Do livro  MATER PURISSIMA: Histórias da Festa de Conceição em Abaeté do Tocantins (Prêmio Dalcídio Jurandir de literatura da Fundação Cultural do Pará)          Começava a escurecer. A noite caía naquela lentidão  tropical que fazia dessa hora uma das mais tristes e  nostálgicas do dia. Hora para amarrar uma embarcação  à margem de um grande e melancólico rio e quietar-se.  Hora de contemplar a imensidão da planura, quando  as primeiras luzes se acendiam nas casas distantes,  demarcando existências, dores e alegrias.      Dois homens viajavam lentamente de bicicleta por  uma estrada de terra, contornando uma pequena elevação  descampada. A estrada já obscura refletia nas poças de água de uma fresca chuva da tarde as nuvens brilhantes  que ainda luziam a grandes alturas. Era um refrescante fim  de tarde em maio. Mês das flores.      – Agora serão de plástico… – comentou Dr. Novaes.  Quando pedalava falava pouco. Talvez fosse o parco  fôlego, rarefeito pelos charutos cu

Lembrança pra tua mãe...

  Do livro Deolinda e outros fantasmas amazônicos , este conto inspirado em uma história contada  por minha grande amiga, dona Dorita, Doris em pessoa.   A festa de quinze anos seria no sábado. Dona Dóris pensava nisso enquanto atravessava a praça da matriz em direção à casa dos Solano. A noite chegava devagar naquele crepúsculo frio, pouco antes do fim de abril, quando ainda chovia muito e o inverno amazônico apenas começava a dar sinais de que arrefecia. Dona Dóris usava um vestido branco que ela mesma rebordara, vestido simples de linho branco ao qual ela acrescentara mangas de organdi feitas com sobras de um vestido de casamento. Pendurada no ombro levava a grande bolsa de costureira, cheia de seus instrumentos de trabalho, aos quais acrescentara um bom estoque de alfinetes, todos espetados em uma pequena almofada em forma de coração com alça de elástico para prender no pulso, pois naquela noite fariam o ajuste final do vestido no corpo da debutante. Dona Dóris cruzava a praça