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Vozes do Além

            Era noite fria de fevereiro.  Uma terça-feira gorda, em que dava para ouvir na cidade inteira a orquestra tocando marchinhas no Bancrévea. Norberto não poderia ir à festa naquela noite, embora o Caetano o tivesse chamado para ser o operador do Fantástico Bailar Bi-canal, aparelhagem que tocaria naquele baile. As ruas em volta do prédio Lucídio Paes estavam desertas. Nenhuma viva alma passava por ali, naquelas horas domínio de ratos e morcegos, que circulavam livres hipnotizados pelo odor de gordura e sangue fresco vindos do mercado de carne. Um cheiro de maresia soprado por uma brisa suave subia do rio em direção à terra firme. Acolá o seu Contente lia um pouco à luz de um aladim brilhante. Mais adiante, sob uma marquise na penumbra, um casal tramava o amor às escondidas. No café do Guilherme armado em palafita dois gatos pingados e embriagados discutiam política em cima das águas escuras do rio. No bar do Nicola era noite de reunião da Sociedade Freudiana, e era possível a

O Livro

  (Do livro Histórias de Visagens, vol. 2) Bibil chegou meio desconfiado naquela tarde. Esperou que o velho Soares se afastasse um pouco do balcão e se achegou no Neca. - Neca - disse baixinho, coçando a cabeça e falando quase pra dentro - o livro chegou... - Não tenho ainda o dinheiro... - sussurrou o Neca. - Deixa comigo. Vou ver se o seu Mendonça me fia essa... Os dois se afastaram quando o velho Soares retornou para o balcão, comentando que a maré ia dar muito peixe na semana santa. Já o camarão, iria desparecer nos igapós da maré cheia, até a próxima baixa... Fazia um calor infernal naquele comércio, ali na beira, no canto do Raimundo Soares, diante da ponte grande e da loja Raposa. Um barco passava, espocando fumaça preta por uma chaminé torta. Era meio da tarde, uma terça feira daquelas em que dá uma cuíra, uma vontade enorme de ir embora de Abaeté pra ver se a gente conhece coisa nova e arranja um trabalho melhor. Os que resistem, sem dúvida prosperam. Quem não agüenta a dureza

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  Para festejar, um texto breve de Rubem Fonseca: A literatura de ficção morreu? Rubem Fonseca Muito antes de publicar o meu primeiro livro eu já ouvia dizer que o romance e o conto estavam mortos. Parece que a primeira morte teria sido anunciada ainda em 1880, não obstante, como todos sabem, Emily Dickinson, Tchekov, Proust, Joyce, Kafka, Maupassant, Henry James, o nosso Machado, Eça, Mallarmé, as Brontë, Fernando Pessoa (um pouco mais tarde) estivessem ativos naquela época. No início do séc. XX, com o lançamento, por Henry Ford, do Ford Model T, um automóvel popular, construído numa linha de montagem, um carro barato que em poucos anos vendeu mais de quinze milhões de unidades, as Cassandras afirmaram que agora a literatura de ficção, na qual se incluía a poesia, estava mesmo com os dias contados. Dentro de pouco tempo todas as pessoas teriam automóvel e usariam o carro para passear, fazer compras, namorar em vez de ficarem em casa lendo. Ou porque não soubessem o que lhes reservava

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 14

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 Brinquedos A imagem retrata um momento, na primeira metade dos anos 90, em Abaeté, quando o brinquedo de miriti vivia seu ocaso. Sufocado pelos importados, bailava ao vento, pendurado na armação feita com o próprio miriti, em estado bruto, ao som da conhecida música – uma crítica em versos! - que falava de nossa inexorável vocação de colônia. Lembra? Belém, Pará, Brasil, do Mosaico de Ravena. Pois bem, a rendição ao “melhor” que vem de fora estava quase consumada... Artesãos esquecidos ainda se dedicavam ao ofício, ao qual já poucos dirigiam alguma atenção. Fiz essa imagem quando voltava para casa no dia de um Círio de Conceição e passava diante do garoto. Imediatamente vi o que a câmara poderia congelar em filme e não tive dúvida em fazê-lo; o registro de um momento, daquele momento que era, talvez, um dos últimos dias do brinquedo de miriti. O que se pode constatar é que desde esse tempo, algumas coisas mudaram. Os artesãos se organizaram em associações, grupos, redes de apoio e de

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 13

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 O GRUPO VELHO DE ABAETÉ Voltemos quase um século.  Retrocedamos a esta imagem, dos anos 30 do século passado, bem no centro da velha Abaeté. O que hoje se chama de Canto do BASA. Foi em um lugar tranquilo como este, que um pouco antes, logo após a virada do século 19 para o 20, foi fundado o grupo escolar de Abaeté. O Grupo escolar, chamado pelos antigos de Grupo Velho de Abaeté, fundado em 1902, aqui aparece retratado em 1908 a mando do governo do Pará. Esse foi um dia especial, um fato incomum na rotina sonolenta daqueles velhos tempos. Claro. A chegada de um retratista em Abaeté era um acontecimento. Todos teriam sido avisados de véspera que o retratista iria fazer a foto. Então, vestiram as melhores roupas, os ternos e os chapéus das ocasiões especiais. Até a organização de todos diante da câmara foi cuidadosamente pensada. As meninas no andar de cima. Embaixo os garotos perfilados e vigiados por um homem de cartola que aparece sinistramente à direita, no fim da fila, como deveria