CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 12

 O IMPERADOR



Sua derradeira imagem, colorizada mediante um processo eletrônico disponível em um site especializado.

Rés o chão o piso elevado no pórtico, os degraus que tínhamos que subir, penitentes, para contemplar um milagre técnico, aquele que trazia à vida uma fita plástica com imagens gravadas e as fazia brilhantes em uma tela. Hipnotizados, boquiabertos víamos, em Cinemascope colorido, as extensas pradarias do velho oeste, Sierra Madre e o Grand Canyon; templos gregos e romanos; selvas africanas; estupendos exercícios de Shao-Lin. Em um preto e branco saltitante e mudo, o suplício do Cristo na Sexta-Feira da Paixão...

Depois de cruzarmos a sala de acesso, passando sobre um piso de ladrilhos vermelhos antiquíssimos, adentrávamos na grande sala de projeção, ainda iluminada suavemente, a cuja penumbra nos acostumávamos devagar. Nunca víamos os detalhes toscos, claro, para não perdermos o encanto.

O piso era de um cimentado liso, a tela pouco luminosa, as cadeiras duras e desconfortáveis. Destas, o que mais chamava a atenção era o grande “I” entalhado no meio do encosto. Pouco importava que essa letra era a inicial de um cinema da capital, que havia estofado seus assentos e vendido ao Imperador de Abaeté as cadeiras antigas e inservíveis. Para nós era um detalhe mágico, pois sentar ali era impregnar-se da “aura” do Cinema da Praça da Bandeira, o mágico Cine Imperador, de “I” maiúsculo!

Quando conheci o Imperador, o neon da fachada não mais funcionava, mas fico imaginando aquelas luzes coloridas brilhando para a praça silenciosa em noites frias e invernais. No alto estava o boca-de-ferro, o projetor de som que avisava a cidade inteira, tocando uma música bem conhecida, que a sessão da noite ia começar.

A porta era enrolada para cima mediante um complexo sistema de engrenagens, que eu contemplava admirado. Ao lado havia a manivela que o acionava. Parecia o mecanismo de âncora de um navio prestes a zarpar para um cruzeiro que nos levaria a descobertas extraordinárias; viagens a mundos que nem em sonhos contemplávamos, somente ali na tela do Imperador elas se tornavam reais. Ou quase, até onde a imaterialidade de luzes e sombras dançantes permitia.

Aprendi, lendo, que as imagens do cinema são o produto de uma grande ilusão sociotécnica, que mistura natureza e tecnologia. A tal “persistência retiniana” (a permanência de impressões luminosas na retina por uma fração de tempo após elas desaparecerem) nos faz ver movimento sobrepondo milagrosamente quadros estáticos, mais ou menos quando giramos um galho em brasa no escuro e vemos um contínuo círculo de fogo. Essa é a parte natural do processo.

O outro lado é a engenhosidade humana, que começou com teatros de sombras (ou com o mito platônico da caverna, o arquétipo da ilusão das aparências…) passou por aparelhos que simulavam movimentos (o famoso Kinetoscópio, que lamentavelmente impedia a contemplação coletiva) até a mágica invenção dos Lumière que assombrou uma plateia ao mostrar um trem avançando sobre os espectadores, a ponto de parecer que irromperia da tela. Imitei certa vez aquele milagre fazendo desenhos ligeiramente diferentes em um bloco de papel e depois virando as páginas bem depressa. Ali estava meu cinema particular, onde vi um boneco pulando corda, outro fazendo embaixadas com uma bola, um cachorro correndo e latindo… Sentia-me um deus, criando vida naquelas páginas inanimadas.

Vivendo em um mundo de palavras, que nos eram familiares na biblioteca da escola, na Casa da Cultura, na livraria do Expedito Machado, na banca de gibis do Bomba, aos poucos estávamos sendo iniciados no universo das imagens que, também, nos contavam histórias. Televisão ainda era para poucos, para aqueles que podiam comprar o aparelho, mandar fincar um poste no quintal e colocar uma “espinha de peixe” (enorme antena receptora que tinha esse formato) bem potente, para captar em preto-e-branco os dois canais de Belém, a TV Guajará e a TV Marajoara. E a programação era tão sem graça para nós, as crianças… Entrevistas, jornais, parolagens e mais parolagens… O Clube do Guri (“Secretária, traga um saco de bombom aqui para o amiguinho!”), as Aventuras de Rin-Tim-Tim, Jonny Quest… eram os nossos momentos. Mas somente quando um vizinho atencioso nos permitia o desfrute..

Para a maioria, porém, havia o Imperador na praça, o nosso grande professor. De Ciências, de História, de Geografia… de Cultura! O que víamos nos filmes nos fazia viajar, sonhar, conhecer… Nos deslumbrava aquele mundo infinito que se espalhava além da floresta e do rio que nos cercavam e nos mantinham presos à realidade ribeirinha e monótona de um pequeno e tranquilo burgo perdido na imensidão da Amazônia. Tudo era muito maior, muito mais empolgante e desafiador, ali na tela do Imperador.

Claro, ao nos tornarmos homens aprenderíamos que a vida não é como no cinema. A bolha de romantismo e de heroísmo seria rompida pela afiada unha de um demiurgo insensível que nos traria à realidade do vale de lágrimas. Acabaria o tempo de conquistas e descobertas e invariavelmente chegaria o tempo das perdas.

Mas, sem dúvida alguma, sem qualquer temor em dizer isto, tudo valeu a pena. Foi bom ter aprendido com o cinema, com o Imperador, naquelas matinês de domingo, que a vida é muito maior do que a nossa breve, fugaz e limitada experiência permite vislumbrar.

Comentários

  1. Que texto lindo! Recordo do cinema, mas só entrei uma vez para assistir um dos filme dos Trapalhões.

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  2. Esqueci de falar neles. Assisti ali "Os Trapalhões na Ilha do Tesouro". Obrigado.

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