A última sessão de cinema

 

Aquela era a última noite da família na cidade. Carmem terminava de arrumar os livros da imensa biblioteca do avô dentro de caixas de cedro para o transporte até a nova casa, na capital.

Todos eram mobilizados, dividindo as tarefas que envolviam desmontar móveis e transportá-los até o vapor atracado no que restara do porto velho da cidade, encaixotar livros, roupas e o conteúdo da cristaleira da sala - envolvendo cada peça de porcelana em camadas e camadas de jornais velhos. O grande lustre de cristal faiscante foi baixado do centro da sala e cuidadosamente desmontado, indo parar dentro de um caixote exclusivo. Cortinas eram removidas e dobradas para serem embaladas junto a centros de mesa bordados e sóbrias toalhas de linho e renda.

Aproximava-se as oito horas e serviriam o último jantar naquela casa, assim mesmo, por sobre caixotes e engradados; as crianças comendo deitadas de peito sobre o chão polido de tábua corrida cheirando a cera de carnaúba e gasolina. Quando o grande carrilhão da sala, testemunha do tempo naquela família há quase cem anos, tocasse as nove horas era o momento da preparação para o sono. Não mais haveria camas naquela casa daí em diante, nem para o velho Heitor. Todos dormiriam nas redes alvas cheirando a jasmins de dona Carmosina.

Seguiria um caminhar sereno até a sala de banho de ladrilhos coloridos e as costumeiras abluções e higienes noturnas. Depois todos deitariam em silêncio, fariam as preces e adormeceriam pela última vez em Abaeté. Quando o velho Heitor, já com a luz elétrica desligada, soprasse o último Aladim somente uma penumbra ainda iluminaria os corredores em mudança e em todos os cômodos daquela casa antiga imperaria o frio e o silêncio.

Varridos pelos ventos frios e rijos do Marajó, mais calmos naquela noite fria e invernosa, os salões, quartos e corredores daquela casa antiga, outrora fervilhante e cheia de gente - onde assistia-se ao longo das gerações daquela família, com a mesma naturalidade, ao labor de dona Zita parteira e ao sofrido ofício de seu Fortunato da funerária – passariam daí em diante a testemunhar o desfile glorioso de Dourados, Maparás, Pratiqueiras e Tainhas no fundo do Tocantins, quando Abaeté virasse leito do reservatório da usina.

Para Carmem era particularmente doloroso desembaraçar-se de um passado juvenil nascido e criado ao redor daquela praça, da Praça da Bandeira, onde ficava tudo aquilo que para ela tinha algum significado em Abaeté. Preparando-se para dormir, já de camisola florida e cabelos escovados, a jovem foi à janela da frente contemplar a praça em silêncio por uma última noite. Aquilo era algo de que gostava muito. Esperava todos se recolherem e quando o silêncio caía sobre a casa ela ia devagar até a janela da frente, que abria removendo com cuidado a enorme tranca de maçaranduba, onde demorava-se sonhando acordada, contemplando a praça vazia. Naquela noite esperara um pouco mais pois todos, inquietos, custaram a adormecer.

Quando abriu a janela Carmem viu o largo envolto em fantasmagórica neblina. Mais fria e silenciosa - talvez porque quase todos já haviam partido e a casa do velho Heitor era a última a ser desocupada ali - a Praça da Bandeira ainda tinha suas luzes acesas, faiscando na cerração que subia até o alto dos postes, mas todas as casas ao redor estavam às escuras. A jovem percorreu com o olhar as construções abandonadas, sentindo uma dor no peito ao visitar em imaginação todos aqueles lugares que amava profundamente em seu romantismo juvenil.

Fechando os olhos e aspirando aquele ar vaporoso, frio e úmido, cheio dos aromas da floresta - mas também de um leve cheiro de enxofre e água sanitária - Carmem começou sua viagem de todas as noites. Os sons e odores da vida ao redor começaram a despertar do silêncio de morte: ali o rádio da professora Carlaide tocava um bolero enquanto a velha mestra preparava a aula do dia seguinte cantarolando em castelhano. As cocadas de dona Leocádia cheiravam em açúcar e baunilha e um cravinho ambíguo ora sugeria a cozinha da doceira, ora o gabinete dentário do seu Nonato, logo adiante. Da sorveteria do Geraldo era possível sentir o cheiro dos picolés de cupuaçu, tapioca, maracujá e Nescau e da cadeia, bem em frente, ouvia um misterioso lamento em língua estrangeira que acabava em choro. Um cheiro de papel velho e borracha de carimbos exalava do cartório do João Reis. O foto Pernambuco cheirava a cigarro e química sulfurosa. Na esquina, do Grupo Escolar, parecia ouvir a sineta chamando para as aulas. Do colégio das freiras, chegava o Pai-Nosso rezado por aquela misteriosa caveira que irmã Stella havia colocado na sala de ciências para as aulas de anatomia. Lá adiante, do outro lado, ouvia o sino da Igreja do Divino Espírito Santo anunciando, com seu lamentoso repique, as missas, as festas, nascimentos e velórios. Do cinema Imperador, junto com o hipnótico ruído da máquina de projeção, ouvia a algazarra da molecada, assovios, diálogos em inglês, tiros e cavalgadas. Deixando por um instante as memórias daquela noite, Carmem recordou os últimos acontecimentos.

Tudo começara quando o velho Heitor chegara macambúzio certa tarde do trabalho na Coletoria. Comera em silêncio e, à boca da noite, havia falado da notícia. Todos teriam que ir embora da cidade, que seria inundada pelo reservatório de uma usina elétrica que construiriam rio abaixo.

"Essa é boa!" - exclamara na ocasião dona Carmosina. "Não bastasse essa fábrica dos infernos vomitando enxofre pro céu dia e noite, nos tirando a paz, agora tínhamos que ir embora..."

Carmem ouvira do quarto as conversas quando os homens reuniam à noite para um café na sala da casa. Da cadeira de vime o farmacêutico Joaquim falava dos tumores, cada vez mais numerosos e inexplicáveis, dos acessos de loucura, tremores e dos natimortos. O prefeito comentava os peixes mortos no Tocantins e os cheiros acres e vapores sulfúricos para os lados da Ilha do Capim. Da "vila dos chifrudos" - como chamavam a cidade planejada para os trabalhadores da fábrica - às vezes escorriam para o Tocantins grandes derrames de massa excrementícia humana cujo deletéria podridão envenenava o rio e matava tudo. Era um esgoto que não dera certo, diziam. E falavam de como um morador conhecido de Abaeté primeiro fora contratado para fazer o dito esgoto e depois deixara a cidade de forma inexplicável numa noite de outubro com toda a família quando Abaeté ficara deserta por conta do círio de Nazaré. Comentavam, finalmente, que ele estava rico em Belém, onde havia montado um grande armazém. Agora a fábrica precisava, ávida, de mais eletricidade e só uma hidroelétrica poderia atender a essa avidez.

Os planos havia começado longe, no Rio de Janeiro, e muito antes que o primeiro cravo fosse fincado no caixão da cidade, por veneno e doença Abaeté do Tocantins foi ficando vazia. Vazia e silenciosa. Seis anos depois, os últimos moradores estavam indo embora porque o rio já tinha data para afogar aquele pequeno burgo cravado na margem direita do grande rio amazônico.

Viajaram aos poucos, os Machado, os Garcia, os Lima-Barreiros, os Couto, os Maués, os Ferreira, os Carvalho, os Nobre-Coutinho, os Felgueiras, os Figueiredo, toda a família Pontes, os Barros da Silva; todos deixando Abaeté para sempre. Um dia tiraram a Padroeira da Matriz e levaram para o arcebispado em Belém. Foi um sinal. No dia seguinte houve um eclipse enquanto uma terrível revoada de famintos morcegos vampiros do Marajó alçou vôo, alucinados em busca de sangue. Eram sinais. Depois veio uma praga de formigas-de-fogo carnívoras devorando tudo e uma horda de louros de olhos azuis chegou pilotando grandes máquinas potentes para limpar a floresta em volta, arrancando as árvores onde haveria a inundação. Carmem seria a última jovem a deixar Abaeté.

Ela olhou para a sala em silêncio e decidiu andar um pouco. Jogou um xale vermelho sobre a camisola florida e desceu para a praça vazia. Saiu caminhando em meio à bruma fria e aromática, indo em direção ao meio da praça, onde até bem pouco tempo uma bandeira tremulava no poste mais alto do monumento em forma de arco que adornava aquele lugar. Aquela seria uma noite de Reis. Haveria grupos circulando pela praça tocando tambores, flautas e banjos e cantando na adoração dos reis magos do oriente. Naquela última noite em Abaeté, porém, ninguém andava pelas ruas silenciosas. Carmem sentou-se no monumento central que homenageava o fundador da cidade e passou a recordar das folias que acompanhara.

Por um instante a bruma invernosa se abriu um pouco e foi possível ver o espectro alaranjado da fábrica vomitando seus fumos pestilentos para o céu na direção da ilha do Capim. Carmem contemplou a imagem infernal e lembrou da professora Teresinha falando de Dante e a descrição terrível de um castigo eterno destinado aos ímpios. Ficou ali em silêncio, imaginando se aquilo que já vivia ali mesmo era um castigo e qual pecado - se é que houvera um - tinha sido o responsável por tudo aquilo.

Fumos densos e alaranjados subiam em convulsão para o céu sobre a ilha do capim. Iluminados por clarões dos postes de iluminação fincados ao redor da fábrica os fumos pareciam labaredas de um dragão das profundezas a vomitar sua ferocidade para o céu. Uma tempestade que passava ao largo, em direção ao Marajó, iluminava a cena com seus relâmpagos e a fumarola ganhava uma cabeleira azulada quando as descargas riscavam o céu. Não choveria naquela noite em Abaeté do Tocantins, mas o cenário tempestuoso que ribombava diante de Carmem era, ele mesmo, um sinal dos tempos agitados e violentos que a cidade vivia nos seus estertores convulsivos.

Depois da chegada dos louros de olhos azuis viera uma estrada de ferro sabe-se lá de que distâncias. Por ela chegava um populacho mestiço e esquálido; levas e levas de retirantes embrutecidos em busca das migalhas da fábrica. Os louros de olhos azuis desfrutavam dos bens da modernidade e exibiam-se tirando retratos em grupos alegres na praça da matriz. Aos outros sobrava admirar de longe e não tardou a haver uma revolta, controlada a chibatas pelo prefeito. A cidade, depois disso, foi ficando triste, amargurada e silenciosa, até que veio a notícia da grande inundação final. Foram embora os vivos, esvaziaram o cemitério e as igrejas. Demoliram o coreto de ferro da praça da Matriz dizendo que aproveitariam o teto de cobre em cúpula para um novo, sabe-se lá onde. Transportaram o Grupo Escolar, o posto de saúde, a coletoria, o cinema e o teatro. Foi-se o dentista Dr. Lopes com lágrimas nos olhos e o protético Nonato logo atrás. Quase por último desmontaram a ponte grande para aproveitar os esteios que estavam fincados no rio há mais de um século. Salgaram e lacraram uma casa amaldiçoada onde diziam que fazia visagens e dela não tiraram nada porque nada dela queriam; nem os fantasmas nem a gigantesca biblioteca de um homem que enlouquecera e matara todos os parentes e que, diziam, tinha parte com o demo. Ficaram as construções vazias e silenciosas na noite fria de janeiro. Carmem ali, aspirando os odores e relembrando as dores do fim. Sua respiração condensava em nuvens de cristais iluminadas pelas fracas lâmpadas ainda acesas na praça faiscando por entre a cerração.

De repente, ela percebeu que ainda podia ouvir os sons vindos de dentro do cinema. Todas as lembranças sonoras de uma juventude feliz já haviam silenciado, exceto a sessão do Imperador. Levantando-se, virou em direção à esquina da prefeitura e contemplou o cinema que ficava logo ao lado. O prédio estava fechado e às escuras, mas de lá de dentro vinham os ruídos, como se uma sessão estivesse em andamento. Caminhou até o cinema e ao chegar mais perto, percebeu que os sons realmente vinham de lá, não do interior da sua cabeça. Parada diante da construção antiga - do tempo da fortuna da cachaça - observou o cartaz de um faroeste que ainda ilustrava a grande placa de madeira desbotada, pintada de verde-claro, pendurada na parede da frente, ela que anunciava o filme da semana. Os sons vinham de lá de dentro.

A cidade estava em silêncio, o cinema fechado, luzes apagadas, mas parecia que uma sessão estava em andamento lá dentro. Ruídos de tiros, cavalgadas, vozes em inglês, gritaria da plateia, aplausos, o ruído sonífero da máquina de projeção. Carmem ouvia tudo aquilo.

A jovem sentou-se na calçada ajeitando o xale em torno do corpo para proteger-se do frio, sozinha diante da praça, na cidade que dormia sua última noite. A sessão de cinema prosseguia. A última.

Carmem compreendeu que aquela também era uma despedida. Pela última vez, mesmo que fosse em uma sessão fantasma, também aqueles que haviam partido primeiro despediam-se da cidade. Um menino afogado no Ajuaí, outro morto de febre. Um velhote magro e teso que enfartara durante uma sessão, outro que caíra dos caibros quando cobriam o prédio. O velho projecionista fumante que tossira sangue até morrer e uma senhora rica, piedosa e devota sepultada com um rolo do filme da vida de Cristo dentro do caixão. Todos esses, e muitos outros, assistiam aquele último faroeste e gritavam, torciam pelo mocinho - que chamavam simplesmente de "O Artista" - comiam mentas e cocadas da banquinha perto da porta, assobiavam logo no começo do filme quando o Condor ia começar a voar e ululavam junto com os índios em cavalgadas imaginárias por pradarias monumentais que só conheciam ali, na tela em Cinemascope do Imperador, onde o Grand Canyon e Sierra Madre materializavam-se em uma luz caleidoscópica e dançante. Compreendendo isso, que também eles se despediam ali da cidade, ela levantou-se de um pulo e voltou para casa.

Entrou, colocou a pesada tranca na porta, escovou depressa os cabelos perfumados, foi um instantinho no sanitário e deitou-se.

Rezou pela última vez a oração da noite em Abaeté do Tocantins e adormeceu depressa.

Partiriam bem cedo.

Comentários

  1. Texto belíssimo, revisitei Abaeté junto com Carmen. Os detalhes da narrativa são impressionantes....o tom verde escuro da placa do cinema. Kkk interessante que esses detalhes estão no nosso subconsciente de Abaeteuaras, mas esquecidos.... infelizmente. Parabéns Jorge Machado. Já na expectativa do próximo post.

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