CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 2

 ÁRVORES, TERRA, CHUVA, DENDROFILIA...

 

Árvores são criaturas extraordinárias. Transformam a energia solar em comida. São capazes de produzir seu próprio alimento. Não falam bobagens, apenas vivem e, se têm alguma consciência do existir, aceitam caladas sua condição vegetal. São usinas químicas maravilhosas, produzindo a partir de água, gás carbônico e energia solar uma infinidade de substâncias, desde a humilde glicose até coisas muito complexas como algodão, óleos e essências. São nossas parceiras fundamentais na sobrevivência. Podemos viver sem um cartão de crédito, sem carros ou roupas de marca. Mas sem água, sem solo fértil e sem árvores, certamente pereceremos. Como disse aquele famoso escritor louvando-lhes a generosidade, nós lhes damos estrume e cadáveres e elas nos devolvem flores e frutos. Estão na base de toda cadeia alimentar e são as responsáveis diretas pela vida na terra.

Estas reflexões me vêm à mente diante do drama ambiental vivido pela Amazônia, fatos que são de longa data - dado o modelo predatório de ocupação desta região - mas que agora ganham maior visibilidade na mídia em função de interesses vários, não necessariamente amazônidas. E aí eu lembro da velha Abaeté de antes do final dos anos 70.

Saí de Abaeté em 1978, para estudar na capital. Nessa época eram cinco bairros. Já havia asfalto, luz elétrica mais firme, alguns telefones em casas de privilegiados, televisão captada somente por quem podia colocar bem alto uma enorme espinha de peixe (você sabe de que espinha estou falando?) e o Imperador continuava firme na esquina, dando um tom melancólico às noites frias quando, pontualmente às oito e meia, tocava o "prefixo" indicando que o filme ia começar. Era o tema musical de Três homens em conflito (The good, the bad and the ugly, clássico de Western lançado no Brasil em 1968 que reuniu Sérgio Leone e Clint Eastwood em monumentais e desolados cenários, iluminados pela extraordinária trilha sonora de Enio Morricone), inesquecível para quem viveu naqueles tempos. Quando aquela música tocava, era um sinal. Todos os que perambulavam pela praça vazia e segura sabiam que, de duas uma: ou entravam para assistir ao filme, quando podiam, ou retornavam para casa sob ordem paterna para se recolher. E a praça silenciava. O único movimento era no Imperador. O ruído hipnótico da máquina de projeção podia ser ouvido lá de cima, da sala de projeção. Via-se fumaça saindo da máquina (o consumo dos carvões da luz de arco voltaico usados na iluminação) e um grande rolo de filme girando lentamente sobre ela. Passava um cine jornal da Atlântida em preto e branco, aparecia o certificado da censura federal e depois mudavam a lente do projetor para cinemascope. A tela abria e era hora de espantar o urubu (O Condor, lembra?) Na rua, diante do cinema, uma longa fila de bicicletas sem tranca alguma (maior em dias de sucessos ou de A vida de Cristo, aquele de Ferdinand Zacca, de 1908), a banquinha de menta, raros "perus" sem dinheiro ouvindo o filme do lado de fora... Quando acabava a sessão, por volta de dez e meia, rapidamente as ruas em volta esvaziavam e caía um silêncio tumular sobre elas. O vento do Marajó soprava as mangueiras copadas, farfalhava os açaizeiros dos quintais, os jambeiros do cemitério... Uma névoa fria cobria tudo, como um lençol fofo de boa noite sobre aquela praça calada e acolhedora.

Na imagem acima, de 1965, ela aparece quase pronta para a inauguração em janeiro de 67. Começava o asfaltamento das ruas em volta, cobrindo com betume uma terra meio arenosa, de tanto varrida e capinada, destino que aguarda qualquer solo amazônico quando retirada a cobertura vegetal. As mangueiras ainda persistiam embora por pouco tempo. A desculpa para o abate foi alinhar as ruas para o tráfego dos veículos, que começavam a aparecer aos poucos.

Ao redor, um casario baixo e simples, o Basílio ainda menininho, já o INSA; ainda era possível ver de longe a torre da Matriz, na época tão alta que ganhara até para-raios. Nos quintais muitas árvores frutíferas, umas enormes como pupunheiras e coqueiros, outras exóticas hoje, como biribá e ginja; até caxinguba e andiroba havia em alguns. E quase ninguém nas ruas. Decerto que era perto do meio-dia, estavam almoçando ou fazendo a sesta da tarde, daí esse vazio tão perturbador. Mas quem viveu ali sabe que era assim mesmo. Nada de mais. E as árvores?

Por todo lado nessa fotografia. Nos quintais a maioria. As mangueiras talvez fossem ainda da Belle Époque amazônica, plantadas imitando o que o velho Lemos fizera em Belém, o dito embelezamento da cidade. Joias raras aqui e acolá, que serviam de sombra para aplacar a fúria solar e nos presenteavam nos meses do final do ano, frios e chuvosos, com o cheiro agradável da inflorescência e com frutos suculentos que caíam ao soprar de uma brisa mais forte. Era hora de parar o futebol de rua sob chuva e correr para ver quem primeiro coletava as mangas.

Claro que não era o paraíso na terra. Não se pode recortar o passado, retirando dele apenas o que é nostálgico e agradável. Havia desigualdade, exploração e injustiça, a luta pela sobrevivência também era terrível para a maioria, mulheres morriam de parto e jovens perdiam dentes como hoje não se perdem mais, resignados convivendo com lombrigas e solitárias. Mas a natureza estava ali, quase intocada.

Alguns pensadores contemporâneos falam na "civilização solar", aquela advinda do uso racional dos recursos naturais, pautado pela ciência e pela justiça social. Para a Amazônia, fala-se na "civilização florestal", também tendo a ciência como régua e compasso e a justiça social como aspiração coletiva, proporcionando o uso racional da nossa maior riqueza (A floresta; as árvores, os animais, os rios!) em pequenas comunidades instaladas nela, vivendo em harmonia orgânica com os ciclos de matéria e energia que dinamizam e potencializam tal riqueza, matéria-prima essencial para um futuro sustentável, sem a predação, o parasitismo e a selvageria que reina nos dias de hoje.

Seria querer muito passar os dias assim na Amazônia?

 

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