CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 3

 SILÊNCIO


Lembro que certa vez visitei um balneário em Abaeté que se dizia ecológico. De fato, havia aquelas lixeiras coloridas para coleta seletiva, placas educativas na praia, limpeza em todos os lugares, a natureza preservada. Posso dizer que me senti em casa, feliz por estar ali para apreciar as árvores, ouvir um igarapé indo em direção a um rio mais largo, o farfalhar dos açaizeiros, o canto dos pássaros.

Tudo ia muito bem até começarem a montar enormes caixas de som. Vi sobressaltado ligarem os fios naquelas monstruosidades e logo sentei, já tenso, na rede onde estivera deitado em paz, não acreditando no que presenciava. Daí a pouco aquele ambiente bucólico foi inundado por uma barulheira infernal e somente pude me retirar resignado do barracão, indo para bem longe, do outro lado do igarapé, onde fiquei a meditar sobre o que estava acontecendo. Fiz, naquele momento, uma constatação iluminadora: para algumas pessoas, poluição sonora não é poluição.

Já sabia que, segundo o mestre Benedito Nunes, assim como a natureza tem horror ao vácuo (coisa dos filósofos gregos de antigamente) o caboclo tem horror ao silêncio. Não só o caboclo, aliás, porque o silêncio é perigoso, pode fazer ouvir a voz interior e a humanidade, nos tempos de hoje, prefere não ouvir as verdades que vêm lá do fundo, lá de onde as palavras faltam, de onde chegam as descobertas, a autoanálise, a reflexão, a meditação mais densa sobre o estar no mundo. Nesse momento, presunçosos e canalhas, por exemplo, talvez (???) se sintam ridículos. Então dá-se a entrega à música (música?), à tagarelice, ao falar sem parar nas “redes sociais”, porque quando se fala pelos cotovelos oblitera-se o cérebro.

Faço essa reflexão ao contemplar esta imagem. O canto do BASA nos anos 1930, cerca de 35. Ao olhar para ela, a única palavra que me vem à mente é… silêncio.

Não havia alto-falantes, a eletricidade era precária e só lá no fundo, perto do trapiche da cidade, na beira do rio. Também não havia ninguém parolando ao acaso pelas ruas. Devia ser perto do meio dia e muitos talvez estivessem recolhidos, almoçando, fazendo a sesta, lendo um livro… Talvez (os ricos daquele tempo) ouvindo um rádio com pilhas novas e uma antena enorme no telhado, com bom aterramento. Nada de escapamentos esportivos, de acelerações absurdas, de carros-som, de aparelhagens treme terra...

A composição da imagem foi agradável, o fotógrafo contornou o primeiro plano com algumas árvores e o horizonte um pouco baixo, além de permitir ver melhor as árvores, conduz o olhar do leitor para um ponto de fuga relevante, o trapiche. Talvez lá, perto do rio, houvesse algum movimento, mas na esquina fotografada a imagem sugere ausência e silêncio. Não uma ausência plena, no entanto. Há sinais de atividade humana ali.

Na primeira casa à direita, colchões e redes expostos ao sol sugerem uma limpeza, a faina doméstica diária, o arrastar das vassouras, o bater dos espanadores. Talvez houvesse crianças que ainda molhassem a cama, talvez um adulto incontinente que passasse a noite entre escarros e imprecações. Talvez apenas um costume, em climas úmidos, de remover o bolor das camas, que haviam sido polidas com óleo de peroba e o cheiro recendera pelos arredores logo cedo, na manha fria.

À esquerda, na esquina, morava uma professora muito conhecida na cidade. Pode ser que nessa hora, depois do almoço, se ela tivesse um piano em casa, começasse a estudar executando alguma sonata, algum noturno, alguma valsa. Esse som, suave e distante, como deveriam tocar os pianos na Abaeté dos anos 30, talvez pudesse compor um fundo para o farfalhar das árvores e talvez até os passarinhos – que também paravam para descansar nessa hora, como se dizia antigamente – ficassem a escutar em silêncio.

Silêncio. Não o silêncio tumular, perturbado apenas por um ruir de ossos, uma deletéria bolha gasosa rompendo tecidos inchados, o deslocar de um maxilar podre, a euforia dos vermes a roer a carcaça putrefata, seja de homens ou de ratos; ambos proteína animal já condenada à corrupção desde a nascença. O silêncio das alturas, esse sim, o das imensidões continentais, do recolhimento para a vida interior, a verdadeira vida. O voluntário calar.

O silêncio para ouvir o não dito, a natureza, a filosofia, Beethoven ou Debussy; as vozes celestiais, o outro lado.

O silêncio de paz.

 

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