CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 4

 Perfume de Jasmins


Esta crônica saiu meio sem querer.

Estava procurando outra coisa e, ao revirar meu arquivo de imagens históricas, encontrei esta fotografia. Parei um pouco pensando. A irmã Eufrásia aparece ao lado de uma família e de uma jovem, provável aluna do Instituto Nossa Senhora dos Anjos, o INSA, diante de uma casa. Chalezinho humilde de madeira erguido sobre estacas fincadas em algum terreno distante, tendo a mata por vizinhança, sem fiação elétrica visível nem torneira gotejante. Pedras enormes próximas à parede sugerem um ambiente lunar, paleolítico, agreste.

Em ordem decrescente de sorrisos, temos a irmã Eufrásia (aquele sorriso expansivo de franciscana, que sorri até da dor que deveras sente...), depois a menininha de pé à porta, a moça de saia e blusa à esquerda, a senhora sentada na escada de acesso (a dona da casa?), a mocinha à esquerda começando... Os demais, de uma sisudez bovina.

Chamou-me atenção a anotação manuscrita no céu, onde são grafadas todas as obras generosas: “Casa construída pelas irmãs colaboradas com as alunas”, caligrafia de mulher; talvez freira ou professora. Infelizmente sem data. Ah, as Capuchinhas... Ah, a Irmã Eufrásia...

Todos os que passaram pelo INSA lembram dela. Diz sobre ela o blog do professor Ademir Rocha:

"Irmã Eufrásia, paraibana de João Pessoa, uma pessoal admirável, foi professora de música e canto no INSA e, depois que deixou de ensinar, se tornou a responsável pelas compras, jardim e portão da Escola, onde vendia seus santinhos e terços, e estava sempre com suas chaves penduradas no cinto de seu hábito e todo dia estava na feira de Abaetetuba fazendo as compras do colégio. Como porteira do colégio media o comprimento da saia das meninas e não deixava passar alunas sem mangas nos vestidos. Cuidava muito bem do jardim da escola, a ponto de proibir a entrada de alunos nesse jardim. Depois das aulas a Irmã Eufrásia, com uma vassoura na mão, expulsava os alunos que teimavam em jogar ping pong.

Pelo seu rigor em suas funções nas tarefas que desempenhava, as Humanistas de 1962 fizeram estes versos em sua homenagem:

'A bondosa Irmã Eufrásia,

paciente e muito calma,

gosta de passar pifão,

a quem merece sentido

e não passa pela porta

quem não tem mangas no vestido!'"

A Irmã Eufrásia tocava um pequeno sino com cabo (uma campa) para marcar os horários na Escola. Essa campa ficava no corredor principal, perto do jardim, no parapeito de uma janela que dava para a secretaria. Ela segurava a campa, ia até o pórtico do jardim perto das salas de aula e de lá tocava várias vezes, para todo mundo ouvir. Lembro que, em determinado ano, minhas aulas de Educação Física terminavam muito tarde, perto das seis e meia e nessa hora já não havia mais ninguém nos corredores. Nós, moleques, fazíamos uma fila e, com os risinhos contidos e com pressa, passávamos diante da janela onde cada um tocava a campa, correndo para a rua em seguida. O segredo era ser um dos primeiros a tocar, daí o empurra-empurra, pois ao ouvir o toque a irmã Eufrásia saía correndo para a portaria, geralmente flagrando os últimos meninos e os expulsando dali aos berros.

Estando tudo certo com os uniformes e com as travessuras, ela nos abraçava na entrada para as aulas e sua roupa tinha o mesmo cheiro de um jasmim que ela havia plantado nos dois jardins do colégio. Conheci algumas vovós que colocavam jasmins nas gavetas, em meio às roupas, e acho que era o caso. Certos eventos despertam não sei que memórias em nós e um desses eventos foi a notícia que recebi, em setembro de 2001, dando conta de que havia falecido a irmã Eufrásia. Eu tinha retornado a Abaeté em agosto desse ano e fui de manhã bem cedo para o colégio, em cujo auditório estava o corpo.

Quando entrei no auditório, imediatamente fui tomado pelo cheiro dos jasmins, o mesmo que outrora perfumara as roupas da freira ali morta. No silêncio e no frio da manhã ouvia os murmúrios do rosário. Fui caminhando adiante e vi uma mulher jovem, de hábito branco, deitada serenamente como se dormisse sobre uma mesa longa. Não era uma ganga exaurida, encanecida e enrugada, que a gente geralmente abandona quando morre à idade provecta. Não sei o que os demais viam, mas para mim ali estava uma mulher de rara beleza, suave, quase sorrindo. Alucinação? Será? Imediatamente senti um puxão forte no peito e aquele característico nó na garganta.

Saí dali já chorando e sentei-me em um banco no corredor principal, diante dos azulejos, aqueles mesmos que ajudáramos a comprar; crianças fazendo quermesses onde vendíamos bolos, pudins e cocadas. Alguém me tocou os ombros em sinal de consolo, mas não vi quem foi. Estava de cabeça baixa e minha mente era um confuso turbilhão.

Por que eu chorava? Homem feito, há muito não via a irmã Eufrásia. Tinha dela ótimas lembranças, daquele tempo em que o colégio era extensão natural da minha casa, mas não a visitava regularmente, nem quando ficara sabendo que ela, já em idade avançada, estava com a saúde fragilizada.

Perfume de jasmim sempre foi nostálgico para mim. Minha casa em Abaeté tinha um, havia vários no colégio. Minhas andanças noturnas em Belém, indo do cinema Guarani para casa, eram perfumadas pelos abundantes jasmins e bugarins da Cidade Velha. Acho que aquele perfume foi o causador de tudo. E aí, foi difícil no resto do dia.

Assisti de pé, chorando na catedral cheia, a missa de corpo presente. Lembro do doutor Everaldo, em depoimento emocionado, declarando que aquilo era um começo, não um fim. Saímos em caminhada para o cemitério e, passando diante do colégio, vi o Jorge Solano e mais uns colegas puxando aquele hino, de refrão emocionante:

"Instituto Nossa Senhora dos Anjos

O teu lema sagrado nos conduz

Ao porvir luminoso a que aspiramos

Sob o olhar paternal do bom Jesus"

Hoje, refletindo sobre o que me aconteceu naquele dia, penso que a partida da irmã Eufrásia foi um símbolo para mim, um sinal como muitos que recebi, do fim de Abaeté do Tocantins. Chorava porque também era da minha velha Abaeté que eu me despedia, da Praça da Bandeira, do Imperador, da Matintaperera, das corujas que piavam na mangueira diante da minha casa, da rua de terra que hoje é uma fotografia na minha parede, das noites frias e perfumadas, do farfalhar dos açaizeiros pelos quintais, do vento rijo do Marajó, do INSA.

Nos corredores daquele prédio, que originalmente seria um abrigo da Sociedade Vicentina, vivi a maior parte da infância e juventude. Usei um uniforme de short e camisa listrados - azul para os meninos, vermelho para as meninas! - vesti aquela farda tradicional azul e branca, carreguei o copo cheirando a pão com manteiga dentro de um saco azul; ali vesti uma calça jeans (que a gente chamava de "faroeste") pela primeira vez, de um tecido tão grosso que quase ficava de pé sozinha. Aprendi a fazer cadernos de papel pautado costurados com minha mãe, encapados com papel manilha e decorados com as decalcomanias que a irmã Eufrásia também vendia (Lembra delas, da marca Cromocart, que descolavam em um prato com água e depois eram aplicadas delicadamente sobre os trabalhos escolares? Elas tinham um cheiro inconfundível...). Ali aprendi a ler e escrever, ali ficamos eufóricos com o fim do ginásio e seu terrível exame de admissão - era a implantação da Reforma Jarbas Passarinho, com o nascimento do primeiro e segundo graus - e excitados com a chegada dos novos uniformes com a camisa de malha branca e o nome do colégio pintado no peito. Ah, e opção de calça comprida azul para as meninas, substituindo aquele fetiche feito de blusas de tecido fino abotoadas na frente, saias plissadas, meias três-quartos, sapatos de boneca e um corpo feminino dentro.

Todos os que cresceram ali tem alguma história curiosa para contar, casos que vão desde o roubo de melancias e bananas do pomar, passam pela caveira da sala de ciências que, dizem, recitava o pai-nosso à meia-noite, e chegam até o Luci, serviçal mudo das irmãs que foi protagonista de muitas situações inusitadas. Ao andar por aqueles corredores e sentir o cheiro que eles têm, o silêncio daquele lugar às seis da tarde, fica difícil não ouvir novamente a campa, a voz de irmã Eufrásia, seu sotaque, sua caridade inabalável, sua acirrada devoção às exortações de Frei João Pedro que proclamam:

"Diletas filhas:

• Reine entre todas a Santa Pobreza, como tanto recomendaram Clara de Assis e Verônica Juliani.

• Pratiquem com zelo e suma perfeição a Caridade Fraterna.

• Seja a Humildade o apanágio das Filhas de São Francisco.

• Quanto à Obediência, seja simples e ilimitada, segundo a Regra e Constituições.

(...)

• As Filhas de São Francisco de Assis devem ser simples como as pombas, desprendidas como as florinhas do campo, alegres como as cotovias. Com esse trio maravilhoso de virtudes, a missionária capuchinha faz de sua vida um Poema: o Poema da Seráfica Alegria."

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