Lembrança pra tua mãe...

 Do livro Deolinda e outros fantasmas amazônicos, este

conto inspirado em uma história contada
 por minha grande amiga, dona Dorita, Doris em pessoa.
 

A festa de quinze anos seria no sábado. Dona Dóris pensava nisso enquanto atravessava a praça da matriz em direção à casa dos Solano. A noite chegava devagar naquele crepúsculo frio, pouco antes do fim de abril, quando ainda chovia muito e o inverno amazônico apenas começava a dar sinais de que arrefecia. Dona Dóris usava um vestido branco que ela mesma rebordara, vestido simples de linho branco ao qual ela acrescentara mangas de organdi feitas com sobras de um vestido de casamento. Pendurada no ombro levava a grande bolsa de costureira, cheia de seus instrumentos de trabalho, aos quais acrescentara um bom estoque de alfinetes, todos espetados em uma pequena almofada em forma de coração com alça de elástico para prender no pulso, pois naquela noite fariam o ajuste final do vestido no corpo da debutante.

Dona Dóris cruzava a praça caminhando devagar, apreciando com tranquilidade o anoitecer. Seguia uma diagonal que adentrava no largo campo ao lado da Barraca da Santa, passava pela Catedral de Conceição e chegava no Cristo Crucificado, doloroso monumento que, na expressão do artista italiano que moldara aquele Calvário, retratava indescritível sofrimento. Ali vinham acender libras e libras de cera e ajoelhar na areia quente na contemplação da dor. Naquela hora, perto das seis da tarde, um pequeno grupo ajoelhava diante do crucificado e dona Dóris fez o sinal da cruz ao passar. O Cristo ficava em frente à casa dos Solano e ela caminhou direto do monumento para o imponente bangalô que estava com todas as luzes acesas e janelas abertas, num clima festivo que já dominava os que ali moravam e preparavam o grande baile da filha única do velho Solano.

Da rua era possível ver-se um grande lustre de cristal com cinco lâmpadas acesas, que irradiavam uma luz que refletia nos vidros e se espraiava feérica pelos arredores. Não havia lustre como aquele na cidade.

No pátio, embalando-se sorridente em uma cadeira de vime, o professor Moisés Miranda tomava um Grapete com bolo depois de ter passado a tarde ensaiando a valsa que executaria com elegância na festa com a debutante. Ao lado dele o velho Solano fazia as honras da casa, também ele, como pai da debutante, preparando-se para deslizar com leveza pelo salão encerado da Assembleia Abaeteense levando nos braços a filha que, daí a algumas noites, apresentaria para a sociedade. Dona Dóris passou rápido por eles, fazendo um cumprimento formal com um ligeiro aceno de cabeça.

Na ampla sala, que era uma mistura de ateliê improvisado e espaço de espetáculo naquela noite, haviam colocado um grande espelho na parede dos fundos e uma plataforma coberta por um grande lençol alvo que lembrava um bolo de dois andares. Ao lado havia uma mesinha com rodas - uma daquelas mesas de cedro cheirando a óleo de peroba na qual serviam licores, chá e biscoitos - onde dona Dóris imediatamente começou a distribuir seus instrumentos de trabalho segundo um paciente ritual: a fita métrica ficou cuidadosamente enrolada a um canto. Ao lado dela a tesourinha de bordado, a almofada cheia de alfinetes esperando a hora de ir para o pulso, o dedal, uma agulha fina com linha branca já enfiada e pronta para alinhavar os retoques no vestido, caneta e o caderninho onde anotava medidas segundo um código especial de alfaiates - algo quase maçônico! - no qual havia sido iniciada quando trabalhara como aprendiz no ateliê da dona Estela. Exerceu seu metódico ofício quase ofuscada pelo grande lustre no meio da sala, colocado exatamente sobre a plataforma branca onde ficaria a jovem Dinair.

Arrumada a mesinha, dona Dóris foi até a janela da frente, retirou o elegante bifocal e o limpou com uma pequena flanela azul, procurando melhorar a visão depois do festival de luz que havia mostrado cada pequena porção de gordura sobre as lentes. Dali ficou olhando o povo que começava a se juntar no chafariz no meio da rua, bem diante da casa do velho Didi Solano. Um carrilhão bateu as sete horas em algum lugar ali perto e, coincidência ou não, nessa hora Dinair entrou para a prova final do vestido. Da debutante, não foi propriamente uma entrada. Foi quase uma apoteose, e dona Dóris, ao virar-se, ficou imaginando como seria o baile, se na prova do vestido já era assim.

Tia Jandira - quase ama de leite da Dinair, que fizera o parto de dona Lola e ajudava na criação da menina - correu e puxou as cortinas, cobrindo do povo das ruas aquela visão majestosa. O vestido, por enquanto, era obra privada. Dos de fora, somente a costureira poderia vê-lo. Era algo interditado até mesmo ao professor Moisés, que somente o veria na hora da valsa, na noite do baile. Dona Dóris foi até perto da plataforma e ajudou Dinair a subir.

A jovem caminhava altiva, cheia da elegância e galhardia, com o vestido reluzindo seus milhares de vidrilhos, pérolas e paetês. Era alta e magra, de pele muito alva, e tinha os cabelos claros presos em coque, enrodilhados sob um pente dourado com uma borboleta de pedraria colorida. Estava maquiada com suavidade e, descalça, parecia uma sinhazinha diáfana descida há pouco de uma nau portuguesa ou de uma liteira. Ela suspendia o vestido para ver melhor a plataforma, agitando o tecido marfim coberto de adornos - que brilhavam, refletiam no espelho e reluziam - criando um caleidoscópio de reflexos prateados que se espalhavam pela sala. Era como se a fada madrinha estivesse com sua varinha mágica envolvendo a jovem numa explosão de luz e encantamento. Atrás de Dinair vinha dona Lola, sempre altiva, tocando as castanholas que herdara da avó - uma espanhola de rosto severo, fervor católico e sangue quente - e a tia Jandira ajudando com o vestido. As castanholas impunham respeito.

Às vezes dona Lola ficava tocando e dançando na sala até tarde da noite. Pela janela as pessoas paravam para ver da rua e não era raro uma pequena plateia formar-se para olhar com enlevo aquela dança elegante e misteriosa, que sugeria paixões ibéricas e a coragem do toureiro diante da fúria cega na praça de touros. No rádio, que muitos já podiam comprar na loja do seu Tibúrcio pagando em prestações, Cordélia Santos representava uma apaixonada espanhola em Sangue e Areia. A novela arrebatava. Quando, perto das oito da noite, soavam pelas ruas silenciosas da cidade os primeiros clarins acompanhados pelas castanholas anunciando o começo da radionovela, todos paravam. Para os que acompanhavam Sangue e Areia pelo rádio, dona Lola e suas castanholas representava a encarnação de uma espanhola nos trópicos; altiva e determinada nos passos firmes do Flamenco. Calçando os sapatos Alhambra importados pelo velho Solano ela recitava quase gritando, com voz empostada e sotaque, os versos de Ramirez:

Pobre e bela Andaluzia.

Terra fértil onde surgiu o Flamenco,

e só aí surgiria.

Como uma obra de engenharia divina,

o homem expressa sua dor

e transforma suas penas em alegria.

E o toque-toque do sapateado acompanhado das castanholas compunha uma sinfonia festiva naquela casa. Às vezes o Zé Mistringue aparecia e a acompanhava ao violão, dedilhando com habilidade o que ele chamava de “improviso às castanholas”, criação pessoal do velho mestre violonista que fazia dona Lola rejuvenescer vinte anos e dançar com mais energia ainda; seus gestos adquirindo a força e a altivez de uma jovem castelhana. Naquela noite, entretanto, a atenção estava na filha, sobre a plataforma, e as castanholas contribuíam apenas para dar um tom alegre à solenidade.

Dona Dóris trabalhava com mestria. Ajustava o vestido em Dinair ajudada por Jandira, puxando o tecido e alinhavando com cuidado. Ao mesmo tempo estava atenta às horas, pois voltaria para casa sozinha tarde da noite, e precisava caminhar pela rua do cemitério, onde morava.

Não era um percurso grande. Era voltar pela praça, dobrar na esquina da usina de luz, seguir até o bangalô do Mito Ribeiro, onde começava a rua do cemitério e entrar nela. Passar diante do portão do cemitério, seguir em frente evitando olhar para a capelinha dos judeus, onde diziam que fazia visagem, e chegar em casa, empurrando o portão baixo de tábuas brancas que rangia levemente nas dobradiças. Já dentro do terreno, seguir por uma alameda ladeada de zínias, dálias e onze-horas e entrar na segurança doméstica, colocando pesada tranca atravessada na grossa porta de maçaranduba. Antes desse percurso, porém, era preciso terminar de ajustar o vestido.

Três senhoras que trabalhavam na casa pediram licença para entrar na sala, trazendo um aromático chá e algumas torradas sobre porcelana e linho. Depois de servirem, seguiu-se um breve intervalo quando Dinair desceu da plataforma e sentou descontraidamente sobre o lençol branco junto com a mãe, a costureira e a ama, todas sorvendo o perfumado néctar com as torradas. As serviçais ficaram de pé, perto da porta, à disposição. Na verdade, estavam apreciando o vestido, admiradas em contemplar o nunca visto. Ficaram assim um longo tempo, em silêncio, até serem acordadas do torpor letárgico pelas castanholas da dona Lola. Quase como autômatos, correram para as louças e se retiraram, no que dona Dóris retomou a marcação do vestido. Ficou assim, absorta, até que com um sobressalto a costureira ouviu o carrilhão tocar onze vezes.

- Meu Deus! - exclamou levando as mãos ao peito. - Onze horas! - completou já começando a recolher os instrumentos de trabalho para dentro da grande bolsa. Da torre da igreja, na praça, o sino ecoou as onze melancólicas batidas do carrilhão, espalhando pela cidade silenciosa um langoroso convite ao recolhimento e à quietude.

Dinair saiu depressa para despir o vestido e dobrá-lo com cuidado dentro de uma grande sacola de lona vaqueiro, que foi entregue fechada com zíper à costureira. Dona Dóris, já no pátio da entrada, despedia-se de dona Lola e do Didi Solano quando recebeu a sacola com o vestido. Saiu, enfim, cruzando a praça em passo acelerado rumo à casa na rua do cemitério.

Naquela hora, a cidade já dormia. O povinho que cedo apreciara o movimento na casa há muito que havia se recolhido. Na rua já imperava o silêncio, rompido apenas pelos ruídos comuns da noite: o vento rijo do Marajó soprando nas palmeiras mais altas, os seres da noite saudando a lua, os morcegos estalando seu lamento faminto para as estrelas distantes na noite gelada. Uma cerração descia úmida e invernosa, soprando para longe a canícula tropical e colocando sobre a cidade um lençol de névoa fria. Os cheiros da floresta varriam a cidade a bordo do vento frio e com eles era possível acompanhar o frutificar e dormecer dos vegetais, demarcando as estações. Em abril, mês ainda quase invernoso, o verão já se aproximava e os primeiros sinais do despertar perfumado do final de junho já eram percebidos no Cumaru florindo e nos jasmins, muito comuns nas ruas de Abaeté.

Dona Dóris saiu sozinha, seguindo as brasinhas que faiscavam nos postes por entre a cerração, indicando-lhe o caminho de casa. Ia de poste em poste, de lâmpada em lâmpada. Sozinha na noite fria e silenciosa. Como se quisesse um pouco mais de calor e segurança agarrava junto ao corpo sua bolsa de costureira e a sacola com o vestido da debutante. Assim, atracada aos pertences, caminhava pela noite brumosa.

Ao dobrar a esquina da usina de luz, parou um pouco para tomar fôlego e observar a rua deserta. Ao redor dos postes de luz formavam-se auréolas de vapor úmido brilhante que contribuíam para aumentar a fantasmagoria de uma rua sem ninguém. Ou quase. Firmando um pouco mais a vista na distância, percebeu alguém. Inalou um pouco do ar frio e úmido, o que lhe deu certo ânimo momentâneo e em seguida saiu na direção do vulto que vislumbrara na penumbra. Mais de perto, pôde ver melhor.

Era o doutor Lopes, balançando silenciosamente em uma cadeira de vime que costumava ficar dia e noite diante da casa do dentista da cidade. Ali ele apreciava o entardecer, tomava o mingau da noite, ouvia - e dava - conselhos sobre política, ele que fora prefeito pelo PSD, mas gostava especialmente de fumar cigarrilhas importadas usando uma longa piteira enquanto ouvia boleros pela PRC-5 de Belém, que captava num enorme rádio transistorizado movido a pilhas com um som grave e cristalino.

- Boa noite dona Dóris! - exclamou o dentista parando um pouco de balançar enquanto expirava uma nuvem aromática de tabaco. - Noite ruim para uma caminhada... - ironizou.

- Trabalho, doutor, trabalho... - respondeu a costureira apenas reduzindo o passo. Ainda vou fazer serão... - completou levantando a sacola com o vestido.

- A luz já vai... - comentou doutor Lopes.

- Vai ser no Aladim e na vitrola de pilha pra ouvir o Nélson Gonçalves... - respondeu dona Dóris já indo longe. - Tenha uma boa noite, doutor! - finalizou.

O dentista apenas pigarreou em resposta.

Chegando no canto do Mito Ribeiro, parou um pouco para novamente tomar fôlego e olhou para a rua do cemitério, que começava ali e sumia no nevoeiro. Na casa da esquina, onde o dono do Guaraná Abaeté morava com a família, tudo fechado e em silêncio. Dona Dóris examinou as janelas da casa, pensando - ao imaginar ter vislumbrado a chama tremeluzente de um lampião - nas providências para a dormida segura que incluíam, além da tranca em portas e janelas, a preparação dos lampiões e lamparinas, a fumigação da casa como profilaxia contra os mosquitos da noite e a distribuição dos urinóis pelos quartos. Lampiões, em particular, exigiam especial atenção.

O rol dos dispositivos de iluminação, dada a precariedade da luz elétrica em Abaeté, compreendia desde porongas de barro, nos casebres miseráveis, abastecidas com azeite de andiroba, até o caro e complexo Petromax a carbureto, passando por lamparinas, lampiões de pavio e o belíssimo e delicado Aladim com manga e camisa, cuja beleza e delicadeza começavam pela forma do recipiente onde ficavam o querosene e o queimador e chegavam ao longo tubo de vidro da chaminé. Este, para alguns, lembrava as curvas femininas em um vestido de baile sem alças. Cuidar de toda essa parafernália tecnológica era tarefa da juventude da casa.

Lembrando da luz que iria embora daí a pouco, dona Dóris continuou andando pela rua do cemitério enquanto mergulhava em suas reminiscências de infância

Aos menores cabiam os urinóis. Jogar o conteúdo fora pela manhã cedo, lavar os pesados penicos e deixá-los emborcados no sol sobre o quarador era tarefa simples e repugnante. Fazer a fumigação era coisa para o mais velho, que lidaria com fogo e, sem cuidado, poderia incendiar a casa, o que não era raro acontecer. A ela e às irmãs do meio cabia a manutenção e abastecimento dos lampiões. Dóris quando criança, ainda na casa dos pais, gostava particularmente de um Aladim, cuja luz suave era tão bela quanto o aparelho. Era o que ficava na sala, ao lado do rádio, e o que seu pai usava para ler à noite. Tinha especial ternura pelo pai e cuidava do lampião para ele pois naqueles tempos o amor se demonstrava assim mesmo. Limpava a manga com cuidado da fuligem da noite, removia os resíduos de querosene do pavio e jogava fora todo o combustível restante, que tendia a enegrecer mais e mais a longa chaminé de vidro fino. Quando conseguia um pouco de benzina purificada na farmácia do velho Contente, adicionava a ela - cuja chama era inodora - algumas gotas de óleo de eucalipto, que perfumava os ambientes e criava uma sensação de grande frescor, especialmente apreciada pelo pai. Ela tomava um banho, vestia um vestido azul florido de que gostava muito e perfilava-se ao lado do Aladim para ser a primeira a acender o lampião. Quando o pai chegava para a leitura da noite encontrava uma Dóris sorridente envolvida por um perfume de eucalipto que marcou suas noites tranquilas de infância. Com o tempo, já mocinha, passara a aprender costura com a dona Estela e a praticar costurando velas de lona vaqueiro que o pai vendia no comércio da beira e que iam guarnecer as canoas grandes de todo o Tocantins e do Marajó. Aos poucos, com o talento que tinha, passara de velas e lonas para vestidos de linho e organdi. Já madura e casada fora ao Rio de Janeiro, sob protestos do marido, com uma tia para um curso de alta costura e ao voltar fundara um ateliê que já era respeitado e tinha, ele mesmo, doze aprendizes, duas mesas de corte, três máquinas Pfaff e duas Neome.

Dóris ia pensando nessas coisas quando viu o vulto parado de pé na porta do cemitério. Diminuiu um pouco o passo mas, lembrando da luz que já seria desligada na cidade, das longas pedaladas na máquina de costura madrugada a dentro e das centenas de vidrilhos que ainda faltavam, caminhou depressa novamente e lembrou do seu estratagema.

"Deve ser um deles..." - pensou. Costumava passar por ali à noite, embora mais cedo, e sempre encontrava com alguns jovens reunidos na porta do cemitério conversando fiado enquanto a noite avançava. De longe, parecia que era um daqueles que ela sempre cumprimentava quando passava e eles estavam bebendo, fumando e desperdiçando conversa, naquela prática niilista que vem do nada e vai ao desespero de uma vida sem sentido, com a morte à espera. Ao chegar mais perto, percebeu no jovem bem-vestido, alto e muito magro, cabelos bem curtos e mãos nos bolsos das calças, um completo desconhecido.

- Cadê a tua mãe!? Lembrança pra ela... - disse colocando em prática a estratégia de defesa. Fazendo-se conhecida de todas as mães, defendia-se de possíveis ameaças, já que parecia haver um acordo tácito entre os jovens no sentido da proteção das mães em geral. Mãe era mãe e pronto e, pelo menos, um “filho da puta!” abominável urrado durante briga na feira havia terminado em morte na defesa da honra da filha de Eva que havia gerado um daqueles.

O rapaz a olhou surpreso e em silêncio. Hesitante, pareceu querer entrar no campo santo e esconder-se, mas permaneceu imóvel fitando a costureira que passava. Quando ela já ia a alguma distância ele falou.

- Ela está aqui comigo. Chegou hoje... - disse numa voz clara e suave que, sem ser um grito, foi ouvida longe.

A costureira parou e virou-se. Ficou em silêncio no meio da rua, olhando para o rapaz na porta do campo santo.

- Ela finalmente está aqui comigo... - voltou a falar o homem.- Veja... - completou apontando para dentro do cemitério.

Dona Dóris, desconfiada, voltou alguns passos e, do meio da rua, olhou para a alameda principal da necrópole, ladeada pelos túmulos mais antigos de Abaeté. A mulher estava parada de pé no meio da névoa, ao lado de um mausoléu de granito preto encimado por um anjo contorcido por indescritível dor e sofrimento. Um arrepio sacudiu com violência a costureira.

A mulher, uma idosa de cabelos prateados e braços muito magros, quase descarnados, vestia um longo de cetim negro, com uma barra azul-claro, uma faixa da mesma cor ao redor da cintura, grandes mangas bufantes de renda delicada e uma gola bem alta que quase lhe chegava ao queixo. Sobre a cabeça um grande véu sugeria costumes antigos. Nas mãos, um enorme rosário de pedras negras com crucifixo dourado.

Dona Dóris ficou paralisada contemplando aquela aparição. A velhinha também parecia confusa e amedrontada, mas ousou esboçar um sorriso, no que foi retribuída por Dóris. Percebendo, por qualquer inexplicável intuição, que não corria perigo algum a costureira caminhou de volta para a porta do cemitério.

- Depois de mais de vinte anos finalmente estamos juntos... - disse o homem sorrindo. - Mamãe, dona Palmira, aqui comigo...- Falou virando-se na direção da idosa, que deu um passo para a frente, levantando o véu. Ele, por sua vez, foi ao seu encontro. Juntos, deram-se as mãos e caminharam na direção de dona Dóris.

A costureira os observava serena quando a idosa dirigiu-se ao filho, falando de forma meio enigmática.

- Ela pode nos ver... - disse com uma expressão de súplica nos olhos pequenos e negros. - Pode nos ver... - repetiu enfática, apertando com força a mão do filho.

O rapaz olhou sorrindo para dona Dóris.

- Costumo ficar muitas noites aqui... - começou como quem contava uma história. - Espero os garotos barulhentos que se reúnem aqui irem embora e venho lá de dentro... - completou ficando um pouco em silêncio para que dona Dóris pudesse compreender melhor do que se tratava.

- Lá de dentro... - murmurou a costureira olhando para as alamedas frias e silenciosas que enfileiravam mausoléus sob a névoa da noite.

- A senhora é a primeira que me vê aqui... Isso é um dom muito especial... - sussurrou mostrando os dentes alvos. A fala do filho e a confiança bondosa que irradiava de dona Dóris fizeram a idosa falar.

- Durante mais de vinte anos chorei a ausência do meu menino... - disse com um triste sorriso de porcelana. - Meningite... - completou. - Hoje juntei-me a ele e estou feliz...

- Estamos, mãe. - interrompeu o rapaz. - Estamos... - completou com ternura.

Dona Dóris, de repente, compreendeu o que se passava e recuou um passo de espanto, boquiaberta, levando as mãos ao peito. Os dois, mãe e filho, começaram a caminhar para dentro do cemitério.

À medida que caminhavam, iam sendo envolvidos pela bruma invernosa e eram, eles mesmos, pedaços de névoa que dissolviam lentamente no ar. Na noite fria, dona Dóris ficou sozinha na porta do cemitério.

Sem medo e exultante, com o rosto banhado pela emoção, retomou com serenidade a caminhada para casa e a luz foi embora quando abria o portão.

Na escuridão, mas vivendo uma experiência iluminada, dona Dóris percorreu o curto caminho que passava pelo jardim até a porta de casa. Procurando com calma a pesada chave que trazia atada a um cordão longo, ficou imaginando a morte como uma espessa parede de vidro quase translúcido, por onde pode-se, talvez, apenas vislumbrar o que há do outro lado e, vez por outra, ver um vulto ou ouvir um sussurro. Mas a certeza, agora, é que haveria algo - e alguém - do outro lado à sua espera.

Naquela noite, vivendo aquela experiência de encontro além do tempo e do espaço, além das leis implacáveis da matéria e da energia, Dóris passara a ter esperança de que a aguardaria igual desenlace quando chegasse a hora de rever o falecido marido ou o querido pai, vestida de azul e cheirando a eucalipto.

Confiante, a costureira rezou uma breve prece pelos mortos e entrou em casa em paz.

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