CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 5

 A POSSE DO PREFEITO

Um momento de inflexão, daqueles que ficam marcados para sempre em uma vida, na vida de uma comunidade, uma cidade, um povo. A posse do prefeito Hildo Carvalho em 1967.

Foi na prefeitura velha, um prédio antigo e visagento que ele botaria abaixo logo em seguida, construindo a nova prefeitura, essa que está no mesmo lugar até hoje e parece, ela mesma, hoje acanhada e antiquada, com sua arquitetura datada testemunhando um tempo em que havia dezenas de datilógrafas e office-boys em ação.

Olhando o lugar da posse fico imaginando como parece ter sido simples e despretensioso o viver na Abaeté daqueles tempos. Não houve, nesse dia, aluguel de palcos, luzes e telões ou queima de fogos coloridos. Talvez tenha acontecido uma salva de foguetes e a apresentação da Banda Carlos Gomes, tocando hinos e dobrados na praça em frente. Nada de showmícios com artistas pagos por dinheiro público, oferecendo os velhos pão e circo.

O salão, onde funcionava a Câmara Municipal, era de uma simplicidade comovente e a decoração para a cerimônia seguiu no mesmo tom.

À parede foi presa com tachinhas uma pequena bandeira brasileira. Não se encomendou uma bandeira nova, grande, suspensa em mastros cheirando a verniz recém-aplicado.

Sobre a mesa, à falta de uma rica toalha rendada e rebordada, algo que pode ser uma toalha, mas que lembra um tapete, desses de centro de sala, um pouco surrado pelo uso. Nela repousa um singelo vaso de vidro cheio de areia, com meia dúzia de flores de plástico bem comuns. Ao lado dele um objeto indefinido e uma campainha, dessas de chamar porteiro de hotel ou secretária de repartição pública em algum burgo lá no cafundó. E os demais objetos indispensáveis à cerimônia, como canetas, pastas com documentos e discursos; o livro de atas que registraria o momento.

O mobiliário é simples. As altas janelas abertas e a ausência de ventiladores sugerem talvez um clima ameno, embora imagino que o lugar tenha se tornado abafado naquele dia, dada a aglomeração popular dentro e fora da sala. De pé o prefeito eleito lê um documento, cercado por autoridades e convidados importantes. Na plateia também se vê algumas das pessoas que, no final dos anos 60, destacavam-se na política, nos negócios, na vida comunitária. Ah, sim, e minha Elise McKeena está lá, na primeira fila (quem assistiu “Em algum lugar do Passado” sabe do que estou falando).

O que não se imagina, contemplando essa imagem, são os efeitos desse humilde momento na vida do município daí em diante. Pode-se dizer que esse foi um daqueles instantes em que a história prendeu o fôlego, um ponto de inflexão, sem volta.

Hildo Carvalho era um homem extremamente dinâmico e capaz de iniciativas ousadas. Chegado a Abaetetuba como gerente do Banco da Amazônia, cedo estabeleceu uma extensa rede de aliados, com a qual fizera importantes mudanças na vida social e econômica daquela até então sossegada cidadezinha interiorana. O Banco da Amazônia encomendara ao arquiteto Camilo Porto o projeto da sua agência em Abaeté. Hildo Carvalho conseguiu que o mesmo profissional projetasse o Bancrévea Clube de Abaetetuba e o prédio da prefeitura nova, que ele inauguraria pouco antes de findar seu governo, em 1970. O Bancrévea, em Belém, era o clube dos funcionários do banco, lugar de grandes eventos. O de Abaetetuba, jamais concluído, não ficou longe. Na inauguração da piscina por exemplo, uma celebridade, a Miss Pará Sônia Ohana, desfilou alegremente em trajes de banho. Para animar os bailes, músicos e artistas eram transportados em pequenos aviões vindos de Belém, em várias viagens. Nos jogos da Seleção de futebol de Abaetetuba era comum ver-se o prefeito ao lado do campo, torcendo e vibrando em cada jogada.

Aproveitando os ventos favoráveis que sopravam do governo estadual (que ele conquistara também) o prefeito conseguiu trazer o telefone para Abaeté, ainda que limitado e restrito a poucas residências e repartições, melhorou o abastecimento de energia elétrica, embelezou o centro da cidade e insuflou na população um sentimento de pertencimento e de otimismo em relação ao futuro que talvez nunca mais tenha existido.

No final dos anos 70, quem visitava Abaetetuba sentia-se acolhido por uma cidade ao mesmo tempo dinâmica e hospitaleira; bucólica nas noites refrescantes e movimentada nos seus melhores dias de centro comercial e econômico do Baixo Tocantins. Boa parte disso foi obra desse prefeito à moda antiga, bem anos dourados, um “prefeito Bossa Nova”, como se dissera, aludindo ao JK em Brasília, poucos anos antes. Vivia-se, assim, em um lugar que era, ao mesmo tempo, povoado tranquilo perdido em alguma esquina do tempo e cidade onde já se desfrutava de certos benefícios da modernidade. Sem dúvida uma joia, a tão aludida em prosa e verso “pérola do Tocantins”, que ainda existia. O paraíso na terra? De forma alguma.

Desigualdades, a dependência de Belém para muitas coisas (onde se chegava depois de quase quatro horas de viagem), o privilégio de poucos; os mesmos dramas que se vive hoje em uma região sem desenvolvimento humano nem investimentos em políticas visando os menos favorecidos. A vantagem é que a cidade era muito menor do que hoje, a população irrisória comparada aos quase duzentos mil habitantes da atualidade, os serviços públicos funcionavam plenamente e a máquina administrativa, sem um séquito de secretários e legiões de servidores a corroer o orçamento, era menos onerosa e mais eficiente. Assim, ficava até mais fácil governar.

Hoje o prefeito Hildo Carvalho nomeia o ginásio de esportes da cidade. Talvez lhe fizesse justiça denominar o prédio da prefeitura, depois de reformado e modernizado (Quando?), “Palácio Hildo Carvalho”. Pode ter sido o melhor prefeito de toda a história recente de Abaetetuba, um dos raros em torno de quem parece haver unanimidade ao reconhecer-lhe a competência, a criatividade, a bonomia, a honestidade.

Seria possível a ele fazer o que fez nos dias de hoje, dada a complexidade e a degeneração socioambiental dos tempos por nós vividos? Difícil dizer. Daquela cidade dos anos 1970, cheia de esperança, simplicidade e entusiasmo, fica-nos uma importante lição de confiança, de fé no futuro, de pertencimento, que parece ter se perdido e que aguarda, ardentemente, a sua redescoberta.


Comentários

  1. Uma descrição que em nada perde para Vinícius de Moraes em "Casa Materna", sendo que, o que está sendo descrito é, de fato, a nossa casa materna. Nossa Abaetetuba!! Obrigada professor, por nos dar a oportunidade de visitar esse lugar incrível governado por Hildo Carvalho. Obrigada por recriar com suas palavras esse lugar e nos fazer sentir parte dele. Uma verdadeira descrição sensorial. Parabéns 👏

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    1. Obrigado "unknown", pelo seu comentário muito sensorial.

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