O mata-porca

 

Esperavam o mingau da janta, sentados em silêncio ao redor da enorme mesa onde os trabalhadores se reuniam à boca da noite. Na cabeceira seu Luís Nobre, o dono do engenho.

Era um crepúsculo fresco e acolhedor. Pelas janelas amplas, por onde se podia vislumbrar o poderoso Tocantins rugindo em direção ao Amazonas, soprava uma cálida brisa do Marajó, naquele começo de noite um pouco mais intensa e fria.

Dona Jovita entrou na sala grande perto da cozinha justamente quando soaram os primeiros acordes de "O Guarani", vindos do Semp de gabinete de madeira escura ligado a uma grande antena esticada entre dois açaizeiros. Pilhas novas o faziam falar bem alto.

- Em Brasília, dezenove horas! - disse a voz solene pelo rádio. E os acordes prosseguiram, com os locutores da Voz do Brasil apresentando as principais notícias do dia.

A cozinheira carregava o panelão fumegante e aromático, segurando as alças com a barra do avental. Foi até o centro da mesa e lá arriou sua carga com um baque surdo. Em seguida, silenciosamente, começou a servir os comensais seguindo um ritual repetido havia décadas, que todos conheciam de cor e reproduziam mecanicamente noite após noite.

- De que é hoje, dona Jovita? - perguntou seu Luís Nobre da cabeceira, a quase sete metros do tacho ardente.

- Miriti... - respondeu a cozinheira enquanto enchia as cuias uma após outra. - De miriti com farinha e aquelas bolas de tapioca... - completou.

Seu Luís sorriu aprovando. Gostava, e muitos como ele, de mastigar aquelas bolas de tapioca, que depois de cozidas pareciam bulbos gelatinosos e agradáveis, que eram triturados entre os dentes e engolidos com prazer, como tenros nacos de um petisco simples e saboroso.

De um lado as cuias chegavam vazias a dona Jovita. Ela, com a agilidade de anos de labuta, rapidamente enchia uma com o mingau amarelo, quente e perfumado, passava adiante e recebia outra cuia na mão já vazia, um fluxo mecânico e contínuo que depressa serviu os mais de vinte reunidos ao redor da ampla mesa na casa grande do Engenho São Luís.

Era uma noite clara. A lua boiava serena, descolada há pouco do horizonte. Ao redor da casa havia um terreiro limpo e descampado, que começava com o chão varrido e fumigado, passava por uma curta vegetação rasteira que mal atingia os joelhos de um adulto, até chegar às árvores da densa capoeira, quase cem metros depois. Cuidado contra mosquitos que seu Luís tomava desde que se mudara para o Tauerá com a família. Tinha horror a mosquito e mandava fumigar diariamente, no fim da tarde, toda a casa, os galpões do engenho São Luís e as pontes em volta. Na fumigação o velho Félix usava umas latas de querosene cortadas ao meio onde fazia um fogo e enchia com caroço de açaí e algumas ervas aromáticas. Graças a esse cuidado, todos tinham noites tranquilas, mesmo vivendo em uma casa sem forros e dormindo às vezes com janelas abertas, para aproveitar a ventilação rija e refrescante que soprava da baía do Marajó.

De repente o Bito franziu o cenho e levantou o rosto da cuia. Parou um pouco de tomar o mingau e ficou a escutar, mastigando lentamente uma das bolas de tapioca. Bito era o mateiro do seu Luís, experiente na arte secreta de tocaiar e abater a caça. Ouvido treinado, olfato sensível, Bito sentenciou:

- Anta... - murmurou. - Anta! - falou mais alto.

Pediu silêncio em seguida e procurou ouvir. Um longo gemido, lamento choroso e anasalado de algum animal em sofrimento percorreu a sala.

- Anta parindo... - completou Bito, voltando a sorver o mingau.

Todos, inclusive seu Luís, voltaram-se para o Manoel que, encolhido num dos bancos ao redor da mesa, fingia-se desinteressado.

Seu Luís levantou devagar da cabeceira, baixando a cuia sobre a mesa, e foi até a janela. Dela percorreu a capoeira próximo à casa e rápido achou o animal debaixo de uma samaúma. Ficou olhando por alguns instantes, contemplou a lua que flutuava no céu cerca de um palmo sobre as árvores e em seguida voltou à mesa, soltando longo suspiro.

- É a Mimosa... - disse ao sentar-se.

Todos voltaram a olhar o Manoel, que afundou mais ainda o rosto em direção à cuia. Antigamente ele tomava mingau de forma ruidosa e incômoda, devido aos lábios leporinos. Isso causava certo mal-estar a quem comia perto dele. Parecia repugnante aquele ruído de aspiração, sôfrega ingestão que mobilizava, ao mesmo tempo, boca e narinas. Quando ele sufocava, espirrava mingau pelo nariz e os outros depressa se afastavam. Aos poucos, entretanto, com a ajuda de uma cuia naturalmente retorcida, tão disforme quanto ele, que conseguia virar na boca aberta derramando o líquido diretamente na garganta, o assunto fora resolvido. Desde então ele passara a tomar o mingau da noite em silêncio, cercado pelos outros, sem nenhum sentimento além da saciedade.

A anta - Mimosa - parindo ali naquela noite era o desfecho de uma história muito antiga; motivo de chacota entre os homens e aversão - ou discreta curiosidade - entre as mulheres do Tauerá. Diziam que Manoel preferia a companhia carnal das fêmeas de não humanos, em detrimento das humanas. Todos conheciam a história, já contada até mesmo em poesia de cordel na feira de Abaeté. Os amores de Mata-porca fazia sucesso na forma de uns folhetinhos impressos numa tipografia de Belém e vendidos na porta do mercado de peixe, história que, apesar de conhecida, guardava ainda muitos sussurros, silêncios, ignotos e conjecturas.

Dizia-se que Manoel começara sua bestialidade pelo reino vegetal, com bananeiras e melancias. Contavam os antigos que a primeira vez que sentira o membro quase viril e imberbe cravado naquilo que julgava ser o mistério feminino fora em orifício cuidadosamente aberto num tronco de bananeira nos fundos do colégio das freiras, onde os moleques iam para se atracar em ancas imaginárias. Nas melancias, roubadas do pomar do velho Meirevaldo para deleite lascivo, recortava uma calota elíptica na casca de modo a revelar uma forma e uma cor do que para ele seria o ventre oculto e interditado; e a ele entregava-se com sofreguidão. Influenciado pelos comentários de um velho na beira durante rodada de baralho no Café do Guilherme, coabitara com uma bôta. A experiência quase lhe custara a vida quando, atracado a uma tucuxi e ouvindo extasiado sinos incríveis bimbalhando o prazer carnal, fora socorrido com rimpadas de cipó alho no cangote.

Experimentara aves, répteis e anfíbios, mas cedo enojara-se da cloaca, do odor fétido e repugnante, do ventre asqueroso e primitivo, principalmente quando ouvira da professora Esmerina que cloacas eram, além de canal reprodutivo e passagem para ovos, depósitos para toda sorte de excrementos de seres evolutivamente primitivos, sendo famosas as cloacas romanas, dantescas galerias pútridas por onde vira certa vez um gladiador fugir num dos filmes de domingo no Imperador.

Tentara servira-se de uma arraia moribunda, mas recuara quando contaram-lhe uma história de filhotes no interior da maldita que teriam ferroado o membro de um pescador e o ferido de morte, o que resultara numa dolorosa e humilhante sucessão de gangrenas e amputações - com se fatiassem um salame em pregressiva podridão -, até o desfecho trágico que envolveu o desespero de um homem - sem aquilo que julgava mais precioso em seu corpo - e uma talagada de caldo de cana temperado com verde paris, veneno cruel que lhe corroeria as entranhas e encerraria o sofrimento.

Dentre os cordados aquáticos, portanto, apenas ousou os favores de uma cujuba, animal que, ainda segundo o velho na feira que inúmeras vezes lhe servira como libertino oráculo, era capaz de perfeita felação. Sendo os peixes também dotados de cloaca, decidira-se finalmente pelos mamíferos e daí em diante, perdera-se entre os mastozoários até chegar naquela anta, a Mimosa, sua preferida. Tinha uma faixa branca dividindo a cara ao meio, que ele lavava antes do coito, para ver melhor o contraste com o caramelo da pelagem. Colocava um pedaço de espelho engatado na sapopema de uma árvore grande e apreciava-se em sua bestialidade animal.

O apelido viera do que ocorrera certa vez no chiqueiro, tarde da noite. Todos haviam sido acordados na hora morta por berros alucinados vindos do quintal. Quando seu Luís, dono do engenho, chegara naquela noite à porta da cozinha de pijama com imenso petromax suspenso do braço levantado e cartucheira engatilhada na outra mão, deparara-se com uma cena aterradora.

De um lado do curral, sob a lua, estranhamente rígido e hipnotizado, estava o Manoel, braguilha desabotoada, chapéu na cabeça, um olhar de louco assassino a encarar fixamente uma pequena leitoa que, do outro lado, revolvia-se em convulsões terríveis, gritando e atirando-se ensandecida contra as tábuas que lhe impediam a fuga.

A presença de seu Luís rapidamente alterara a cena, com o Manoel recompondo-se, sorrindo, balbuciando qualquer coisa incompreensível e em seguida saindo silencioso em direção a sua barraca, no final de uma ponte estreita e sinuosa que penetrava na mata escura, onde trancara-se até o amanhecer.

A bácora ainda se agitou por algum tempo e em seguida expirou. Foi para o abate e, exceto, por uma certa rigidez na carne, devido provavelmente à adrenalina, nada de anormal foi encontrado, notadamente nas partes íntimas do animal, detalhadamente examinadas por recomendação de seu Luís em razão do conhecimento que tinha das preferências carnais do Manoel. A porquinha dera boas linguiças na ocasião e o caso ficou por isso mesmo, embora eivado de suspeitas e interrogações.

Desse fato estranho surgiu a crença de que havia algo de sinistro entre o Manoel e o mundo animal. Sugeriram que ele seria um labizonho, ser amaldiçoado capaz de transformar-se em enorme porco. Em memória da bácora, apelidaram-no de mata-porca e a partir daí ele assumiu sua sina de zoófilo com o mutismo, suportando calado as contínuas pilhérias entre os trabalhadores do engenho e os olhares curiosos das mulheres pudicas do Tauerá.

Na mesa, com uma expressão de enfado, seu Luís apanhou novamente a cuia e sorveu longo gole do mingau. Mascou em silêncio algumas bolas de tapioca enquanto olhava para o leporino que se fingia de desentendido.

- Teu filho... - murmurou Bito para o Manoel. - Teu filho vai nascer... - completou antes de mais uma bocada do mingau.

Manoel acompanhava cabisbaixo. Já lhe haviam dito que somente botos tinham a capacidade de engravidar seres diferentes deles, no que acreditava. Mas estava acontecendo ali, naquele instante. Claro que ela poderia simplesmente estar parindo o filhote de algum tapir, embora Mimosa tivesse se revelado espantosamente fiel a ele, seguindo-o pela floresta antes e depois de suas conjunções carnais, com um ar de aparente satisfação e interesse. Ele mesmo a vira refugar a aproximação de um macho em certa ocasião, o que o deixava curioso sobre a cria.

Depois de um grito mais intenso a anta silenciou. Havia parido. Com o pequeno rebento já no chão, ela começou a lambê-lo, enquanto o revirava e massageava com o focinho, parecendo querer insuflar-lhe vida. Crianças que acompanhavam de longe, escondidas debaixo do jirau de uma casa, resolveram sair e se aproximar, embora ainda guardando cautelosa distância para não assustar o animal. Ao perceber essa movimentação, Mimosa voltou a gritar, agitando a cabeça como se pedisse para que ficassem longe.

Manoel, tomado enfim pela coragem, baixou a cuia vazia sobre a mesa, pediu licença a seu Luís e foi até a porta. Ali ficou de pé, segurando o chapéu em uma mão, enquanto com a outra sombreava os olhos para ver melhor na escuridão da mata. Afinal, cobriu a cabeça, apanhou um petromax e saiu caminhando em direção à algazarra.

Quando se aproximou, antes mesmo dos moleques perceberem, Mimosa levantou a cabeça e olhou na direção daquele vulto que caminhava nas trevas, levando o lampião na mão. Reconhecendo-o, olhou fixamente para ele e permaneceu um longo tempo imóvel, respirando ofegante, as narinas de tapir exalando um vapor diáfano. Ato contínuo, empurrou o ser disforme com o focinho para o centro do descampado e ficou à espera, respirando mais devagar.

Seu pelo luziu ao luar uma última vez. Ela voltou-se lentamente caminhando para a floresta, exibindo as ancas peludas cor de caramelo, as listras brancas e marrons, o focinho... Manoel olhou pela última vez para aquele lombo curvilíneo e uma lágrima desceu de seus olhos, infiltrando-se na fenda leporina. Ele aspirou profundamente. Ela, por sua vez, antes de embrenhar-se na mata e desaparecer entre as árvores, lançou um último olhar àquele que fora seu amante e despediu-se dele com um grito agudo, sofrido apelo animal.

No chão, o pequeno ser disforme contorcia-se e emitia leves vagidos agudos. As crianças aproximaram-se e observaram o focinho fendido daquela criatura metade anta, metade gente. Os olhinhos abriam-se perscrutando ao redor, enquanto as formigas carnívoras, atraídas pelas secreções que ainda cobriam o corpinho, preparavam-se para o banquete que não tardaria. Era impossível não reconhecer a cara do Manoel naquela, leporina como ele.

Aproximando-se, o Quasímodo do Tauerá contemplou o rebento iluminado pelo lampião e recuou em seguida, quando a criaturinha virou-se para ele e pareceu sorrir. Ali estava o fruto do pecado, ser único a quem aquele homem transmitira o legado da sua miséria. Pelagem ainda rala, cascos fendidos no lugar de pés e mãos, cabeça primata, lábios leporinos, olhar humano e expressivo, sem dúvida seu filho.

Tomado pelo terror, Manoel saiu correndo em direção a sua barraca. Lá dentro, empapou-se de querosene e ateou fogo ao corpo, numa explosão final de horror e pecado. As labaredas depressa tomaram conta da palha da coberta e a pira final do Mata-Porca pôde ser vista de longe, no meio da mata, sob o luar e a brisa firme do Marajó.

O animalzinho expirou pouco tempo depois e foi sepultado em silêncio no dia seguinte, junto aos restos carbonizados do Manoel, tendo seu Luís recomendado severamente que nunca mais se falasse daquele caso, nem dos envolvidos. Mimosa nunca mais apareceu naquelas bandas e, relatou um mateiro posteriormente, foi abatida durante caçada já perto da Vila Maiauatá, muito longe do engenho São Luís. Encerrou-se assim o caso, conforme contavam os antigos, testemunhas do horrendo fato. Quando estes, por sua vez, apresentarem-se todos a Deus ou a Belzebu para o ajuste final de contas a história será enterrada de vez e para sempre junto com eles, restando apenas suas versões escritas; caprichosas fantasias imunes a contestação e análise.


******************


Anos depois, doutor Novaes filosofaria sobre o obsceno e inacreditável caso do Mata Porca do Tauerá, conforme discurso registrado na ata da 28ª reunião da Sociedade Freudiana de Abaeté do Tocantins. As cogitações filosóficas a esse respeito embriagavam os intelectuais, mas o fato é que o cruzamento entre um homem e uma anta estava classificado, para aqueles sábios, como folclore; mera invencionice de criaturas inferiores, mergulhadas nas trevas da superstição, do atraso e do medo. Pautados pela ciência, que oferecia àqueles espíritos superiores régua e compasso para olharem destemidos a realidade, os membros da Sociedade desdenhavam da história, mas a aproveitavam para filosofar. Filosofar de pé e reverentes, com a gravidade que o saber exige, como de pé ficara o médico abaeteense à cabeceira da grande mesa de cedro polido repleta de copos com gim e gengibirra em torno da qual reunia-se a agremiação no bar do Nicola, em uma noite fria e invernosa.

- Esse é o verdadeiro sentido de um pecado... - começara meditativo o médico, ocultista e psicanalista; de paletó branco, charuto cubano entre os dedos e expressão severa. - A violação das sagradas leis da natureza; suprema negação da ordem estabelecida por Darwin e Mendel e docilmente acatada por Deus e pela natureza - dissera na ocasião, com a língua empastada pelo álcool e um sorriso maroto e iconoclasta no fim.

- Homo sapiens e Tapirus terrestris... separados fatalmente na árvore genealógica da criação mas unidos em um coito abominável... - completou doutor Novaes em voz alta, barba bíblica eriçada, olhando pensativo para o copo de gim com gelo que segurava. - Seria um pecado terrível, - finalizou teatral, falando devagar, levantando um brinde e ingerindo a bebida de uma talagada só, estalando a língua - maior do que qualquer consideração moralista poderia cogitar, se por um instante as leis da natureza fossem suspensas e fatos como esses pudessem suceder...


Comentários

  1. Mano do céu, de onde tu tirou essa história?

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  2. Mano do céu, de onde tu tirou essa história?

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  3. Da vida em Abaeté, da vida contada e sussurrada, da vida presumida e gasta; da vida, enfim...

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  4. Estilo Jorge Machado, realidade ×fantasia 👏👏🤩

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