CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 6

 

AUTORRETRATO

Foi muito antes da invenção da selfie, palavra que, aliás, deriva de “self portrait” significando exatamente... autorretrato! Era comum que fotógrafos fizessem, em algum momento, o seu autorretrato, colocando na imagem algumas marcas de sua personalidade, profissão, angústias existenciais... Entre pintores de todas as épocas, o exercício do autorretrato era muitas vezes uma psicanálise, um mergulho nas profundezas obscuras da alma a partir das luzes da realidade. Augusto Malta, o fotógrafo do Rio antigo, em seu autorretrato, usa o laço das belas-artes no pescoço, considerando-se não um mero manipulador de máquinas e químicos, mas um praticante da nascente arte que mudaria o mundo. Foi assim com o nosso mais ilustre “retratista”, senhor Dico Sousa, fotógrafo, violonista, seresteiro e boêmio.

Não conheci muito Dico Sousa. Lembro que ao receber pelo correio a minha primeira câmara, uma Tuka, câmara de plástico que usava filme 127 em rolo para 24 fotos, fui até ele, que me recebeu com simpatia sentado em uma cadeira de balanço à porta do Foto Sousa e me ensinou a colocar o filme e a sair fazendo meus primeiros cliques. Foi um achado esta imagem sua, de seu estúdio, onde ele se deixou fotografar cercado por dois amigos com aparência de também boêmios e acompanhado do inseparável violão.

Conheci um pouco mais o seu Pernambuco, fotógrafo que trabalhava na Praça da Bandeira e que me ensinou a praticar a revelação de filmes e papéis, no tempo em que fiz meu primeiro curso de fotografia, por correspondência, naquela pequena cidade onde o correio era uma porta aberta para a fascinação com o mundo. Foi pelo atendimento paciente de dona Amélia Mendonça que, em meus inúmeros “reembolsos” (Reembolso Postal, uma forma de compra anterior ao cartão de crédito e que nem sei se ainda existe), descobri coisas como um aeromodelo, um microscópio, um curso de eletrônica, alguns livros, as revistas que meu pai vendia e esse curso de fotografia.

Já pesquisando a fotografia e seus encantos, conversei longamente com o seu Brasil, que me contou histórias fascinantes sobre como era ser fotógrafo em Abaeté nos anos sessenta e setenta; o isolamento, a precariedade de equipamentos, a dureza da sobrevivência, as alegrias do ofício, com seus inúmeros mistérios.

Do seu Dico, porém, soube muito pouco. Soube de um acevo imenso de negativos, que infelizmente se perdeu. Soube de sua bonomia, e penso ter ouvido seu violão uma vez, por cima do muro de um quintal onde se fazia uma seresta. O Foto Sousa ficava na Siqueira Mendes, perto do antigo Tocantins Hotel. Era para mim um lugar fascinante, com o estúdio e sua pintura ao fundo, luzes, uma cortina de onde o fotógrafo emergia com aquela misteriosa máquina - capaz de captar milagrosamente a vida! - e o laboratório nos fundos, interditado aos não iniciados, cheirando a enxofre, iluminado por uma fraca luz vermelha. Algum feitiço acontecia ali, coisa prometeica, possuída por um poder divino ou diabólico. Afinal, só podia ser magia - branca ou negra - imprimir a realidade mais pura em um pedaço de papel molhado de químicos. Só anos depois compreendi tudo e me apaixonei por esse universo que une a natureza, a ciência e a arte e que é a vida, a realidade mais densa e intensa.

Nesta imagem há o banquinho, clássico parceiro do violonista, como há o cigarro, inseparável companheiro do boêmio. Deve haver uma razão para os três usarem chapéu, que me escapa agora, elegância talvez. Ele sorri, diante do cenário modernoso que adornava o estúdio, fundo de metrópole pintado a léguas do pequeno burgo à margem do grande rio amazônico. Mas que compôs fundo para muitos retratos feitos por ele, como este, que eu disponibilizo aos poucos junto com outras imagens em um espaço para compartilhamento de material sobre a História de Abaetetuba.

Época risonha e franca, fluir sereno do tempo, quando o fotógrafo tinha seus momentos de descontração no próprio espaço de trabalho e, ali mesmo, falava da sua vida na linguagem densa da fotografia, aquela que se escreve não com máquinas, mas com a alma, e que se lê com a cultura.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA, À BEIRA DO RIO - FERNANDO PESSOA

As flores da Condessa

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 12