NOTURNO SOBRE A CIDADE VELHA
Padre Benedito foi meu diretor quando lecionei no Carmo. Tinha veia de escritor, poeta, artista. Escreveu este poema extraordinário sobre o sentimento que temos ao contemplar a degeneração do antigo centro histórico. Puxada violenta, escancarada e ao mesmo tempo cheia de símbolos nas cordas profundas do coração e da alma. Um noturno tão harmônico e melancólico quanto uma peça triste de piano.
NOTURNO SOBRE A CIDADE VELHA
José Benedito Araújo de Castro
Musgo envelhecendo nas dobras das rugas
das almas das beatas acorrentadas em terços.
Telhas podres contemplam sinos sem apelos.
Igrejas em pedras tradicionalistas
guardam santos.
Sinos chamam pra missas vazias.
Missas vazias chamando a juventude.
Jovens chamando missas vivas.
E o bispo, em paramentos de bronze, prega para as estrelas:
Sermão de ontem é inútil no púlpito dos corações de hoje.
Praça do Carmo e casarões
com face de lojas de comércio.
Crescem depósitos e morrem as pessoas a cada censo.
Mangueiras, matronas pesadas
cercam um coreto disforme e canções obscenas de jovens
torturam as palmeiras nuas.
Procissões...
Roxos mantos nos lábios desafinados
e incensos abraçando Cristo morto
e Virgem Maria, amarelecida
sem uma estrela na coroa
mãos maternas sem dedos
olhar de bondade quase embaçado
gotas de vela no manto que teve fio de ouro
e fita puída na devoção filial.
Palacete é o que será um povo sem memória:
portas lacradas na argamassa do abandono
sonolência nos vidros da estufa
rachaduras cheias de assombrações
salão de baile para as almas da família Pinho
exumadas pelo capitalismo que
estrangula a História
Rio manhoso - barcos
indo e vindo nas marés da miséria,
gado e telhas - gente por cima dos porões
velas de remendados sonhos infladas.
Regatas como estilete cortam a superfície
do rio gosmoso.
Como janelas para o rio
uma vidraça partida mergulha num sol cheio de sangue.
Os canhões disparam mudos protestos.
No Forte do Castelo se refugia o-que-já-foi,
pois o motoqueiro avança triturando a pedra de lioz.
Fumaças e apito de carretas estupidamente pesadas
envolvem os restos dos casarões
corroendo as pegadas do passado.
Seresta do Carmo:
é a vida que canta pra reviver
a memória da vida.
Depois...
o rock da festinha recolhe os últimos acordes da seresta
Um vôo triste de agonia passa pelas ruas noturnas
e a Cidade, com mantos negros de saudade,
vai se dissolvendo nas brumas da Velhice.
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