A MULHER DE BRANCO

A mancha de tinta no vestido é a versão romantizada e casta da célebre história de visagem que tem por personagem principal a noiva fantasma que assombrava as ruas e escuras e silenciosas da Abaeté de antigamente. Segue abaixo outra versão, mais condizente com os fatos, conforme contavam os antigos, um deles o que capturou a noiva e a identificou. Aqui, é claro, todos os personagens e acontecimentos são produto de imaginação, sem compromisso com a realidade, rsrs. Boa leitura!

____________________________


Naquela noite Doloca inflou-se de desejo.

A messalina do Tocantins deitara cedo, nua como de costume, e ficara na rede ouvindo o rádio enquanto sorvia da sensualidade calma daquele doce embalar. Era uma noite fria e silenciosa. Alguém com seus hormônios em ordem certamente desejaria o repouso, o silêncio, mas aquele turbilhão encarnado desejou a devassidão: Doloca decidiu que seduziria o Rosivaldo.

Professor, o alvo da devassa naquela noite lecionava no Basílio. Dava aulas de desenho e andava de bicicleta levando os seus instrumentos de trabalho presos sob a mola da garupa. Aquela bicicleta era a paixão do Rosivaldo. Era uma Raleigh, bicicleta inglesa parecida com aquela do Rosildo ou a do Tidoca. Aliás ele era parceiro do Tidoca na manutenção do veículo, cujo encargo ficava por conta do Teodolino na oficina do velho boliviano. Era sempre a mesma história, de lubrificar, limpar, e essas coisas, mas dava gosto de ver como ela funcionava macia, sem nenhum ruído.

Como a bicicleta do Tidoca, pintura impecável, capa na sela, corrente engraxada, sapatos de cromo alemão, meias de seda pura, calças de linho inglês com cinto igual aos sapatos, camisa de casimira importada Ele preferia Quina Petróleo nos cabelos ao invés do Glostora e usava um panamá igual ao do Tidoca. No pulso, um Patek comprado do Jackson, que tinha chegado da Guiana. Era o segundo Patek em Abaeté, dourado, reluzindo ao sol tropical, que o primeiro já pertencia ao Tidoca.

Os dois saíam aos domingos para passear e pareciam Cosme e Damião. Todos de branco sobre as bicicletas pretas, a perfeita encarnação de dois cavalheiros dos trópicos, guarda-sol aberto contra a luz implacável. Apenas em volta da Igreja, escolhendo as melhores ruas, jamais tomando o rumo do final da Lauro Sodré que bom moço evitava o cabaré e correndo para casa se viesse chuva.

Rosivaldo era moço delicado e elegante, rapaz de fino trato que despertava comentários maldosos na cidade devido a seus modos. Diziam que era afeminado, e a prova, juravam, eram as duas investidas de Doloca sobre ele, valentemente repelidas pelo professor. Para a gente que falava da vida alheia em Abaeté, aquilo era inacreditável. Fosse um homem normal, tivesse testosterona circulando nas veias, certamente teria agredido ferozmente aquela perdida, aplicando-lhe uma surra de amor. Doutor Novaes falava de alguma fixação homossexual já que ele se vestia como o Tidoca, mas isso permanecia no âmbito das reflexões psicanalíticas da Sociedade Freudiana de Abaeté do Tocantins.

Faltavam vinte para as dez e Rosivaldo sairia do Basílio às dez e meia. Pedalaria em frente ao cemitério rumo ao Algodoal, e seria ali que Doloca atacaria.

Pulando da rede encarando o grande relógio na parede, Doloca abriu o baú que fora de sua avó. De dentro dele, cheirando a patchouli e naftalina, retirou um alvíssimo vestido de noiva. Experimentou o vestido sobre o corpo, invejou a si mesma no espelho, colocou a roupa numa sacola, passou Quina Petróleo nos cabelos e saiu.

As ruas estavam silenciosas e apenas percebia-se movimento no Basílio. Doloca escondeu-se debaixo de uma castanheira diante da casa do seu Mito e ficou esperando. Despiu-se e retirou o vestido de noiva da sacola, ficando assim mesmo, nua na noite fria e silenciosa. Ouviu a sineta anunciar o fim das aulas no Basílio e percebeu a algazarra da saída dos estudantes quebrando o silêncio. Viu quando algumas pessoas passavam direto na Pedro Rodrigues e seguiam na direção do Bancrévea e logo depois o silêncio e a quietude voltaram. Quando Rosivaldo dobrou a esquina ela preparou-se para agir.

Depressa vestiu-se de noiva, nada envergando por baixo daquela roupa branca. Colocou o véu sobre a cabeça ocultando o rosto, segurou grande crucifixo e saiu caminhando devagar rumo à porta do cemitério. Quem a visse ali diria que era uma aparição; que a noiva vestida de branco que assombrava as noites silenciosas de Abaeté do Tocantins estava ali.

Rosivaldo viu aquilo e arrepiou-se. Um tremor tomou conta de seu corpo e ele quis gritar, mas de sua boca os sons não saíram. Parou a bicicleta, desceu hipnotizado da sela de couro e ficou olhando para aquela aparição. Piedoso, quando finalmente conseguiu falar travou um diálogo surrealista com a mulher de branco.

- Que queres tu? - perguntou delicadamente o professor, dominando o horror que tomava conta de seu ser.

Doloca ouviu em silêncio, segurando o riso. Se falasse algo, talvez sua voz a denunciasse. Em vez disso, exibiu o crucifixo que pendia do terço e gesticulou chamando Rosivaldo para dentro do cemitério. O cheiro da Quina Petróleo tornava mais realista a aparição; aquele óleo perfumado que as mulheres de muitos anos atrás aplicavam nos cabelos de certa forma lembrava o passado, os mortos, o deletério medo, o tempo implacável, a corrupção final.

Não parecia haver algum perigo imediato para o professor, e ele, com medo, mas sempre rezando o credo, saiu caminhando em direção à noiva, que recuava.

Doloca quis gritar de alegria, exultava percebendo que em breve incluiria Rosivaldo no rol de amantes que haviam passado por seu corpo, mas mantinha-se fria e calculista. Era um jogo, um perigoso jogo de sedução que ela certamente poria a perder se vacilasse. Em vez disso, com gestos solenes, atraía sua vítima para dentro do campo santo.

- Que queres tu? - repetiu Rosivaldo. - Queres orações?

Nenhuma resposta da mulher de branco, que continuava recuando seguida de perto pelo professor.

- Queres uma missa? - insistiu o professor.

Sempre em silêncio, Doloca chegou sobre uma sepultura e deitou-se. Puxou Rosivaldo para junto de si e o abraçou. Ele apavorado, em transe, não teve forças para reagir. Doloca levantou o vestido de noiva e exibiu seu corpo nu. Percebendo tudo, Rosivaldo recuou apavorado, gritando desesperadamente. Tentou fugir, mas enroscou-se numa touceira de juquira e pareceu que mãos invisíveis o seguravam. Gritou mais ainda, mas Doloca atirou-se sobre ele.

- Hoje tu não escapas, seu fresco! - vociferou a mãe de todas as perdidas. - Aqui no cemitério não tem quem te salve de mim! Melhor te entregares!

- Não, nunca, jamais! - urrou Rosivaldo. - Afasta-te de mim! Socorro!

Rosivaldo recuava, arrastava-se, sentia mãos invisíveis o agarrando, mas lutava bravamente contra aquele demônio nu e descabelado que avançava contra ele. Uma vizinha do cemitério abriu a janela do quarto onde dormia e espiou com o auxílio de um Petromax. À luz amarelada do carbureto aqueles grossos bifocais esforçavam-se para romper a escuridão. Vendo vultos em movimento no cemitério e ouvindo gritos desesperados a vizinha imaginou tratar-se de uma curra e pôs-se a berrar também. Cães começaram a latir na casa ao lado, outras janelas foram abertas e o barulho tomou conta das redondezas.

A algazarra espalhava-se pela rua quando a turba liderada por dona Henriqueta Bouçinhas invadiu o cemitério. Portando archotes e agitando água benta, a Liga pela Moral Abaeteense avançou sobre Doloca. A libertina foi rapidamente dominada e imobilizada, sendo mantida de joelhos sob o olhar vigilante do Ataíde, que a desejava ardentemente, mas controlava seus impulsos. Rosivaldo, apavorado, arrastou-se para dentro de um mausoléu vandalizado e ali ficou, gemendo baixinho e choramingando às tremedeiras. 

Sineiro na igreja, Ataíde entregava-se toda noite ao onanismo sonhando em possuir Doloca e em seguida, cheio de culpa, açoitava-se para aplacar seus impulsos de luxúria. Com isso, definhava, reduzindo-se dia a dia a um farrapo humano; caindo, caindo, lentamente rumo à completa degradação moral. E tudo porque desejava Doloca ardentemente, precisava refrear seus impulsos e ela, por fim, nem tomava conhecimento de sua existência. Sonhava que os dois viviam sozinhos no meio do mato, nus e felizes como dois bichinhos da floresta, e com esse sonho infantil construía sua realidade particular, o universo tranquilo e seguro onde era amado por Doloca. Segurando a devassa firmemente pelos ombros, sentido seu cheiro bem de perto, Ataíde não sabia se fechava os olhos e desmaiava ou se fugia com ela, mas a mantinha agarrada contra si.

- Água benta! - berrou uma beata. - Vamos dar um banho de água benta nessa safada que ela deixa disso!

- Pimenta, pimenta! - berrou um velho do Ajuaí. - Vamos meter um molho de pimenta nela!

- Nâo! - quando dona Henriqueta levantou o braço e gritou fez-se o silêncio. Todos ficaram escutando o discurso da defensora da moral abaeteense.

- Meus irmãos, Deus, o bom Deus, que reconhece as virtudes de todos os homens bons em todas as religiões, nos mandou hoje um mago do oriente, um homem sábio e sereno que, como nós, defende a moralidade nas terras do islã. Ele é poderoso, é sábio, é honesto, não toma banho há vinte anos e mortifica-se diariamente, sendo por isso homem santo e capaz de milagres. Vamos levar esta perdida a ele e ele a purificará, a libertará dos demônios, salvará esta alma perdida, mesmo que o corpo seja destruído. Vamos, irmãos!

A turba explodiu num estupor religioso e Doloca, como Madalena há dois mil anos, foi levada diante de um semita para receber o merecido castigo. Ataíde apavorou-se com o risco de sua amada ser apedrejada, mas agarrou-se firmemente a ela, que parecia em transe, gemendo e murmurando palavras incompreensíveis, parecendo até possuída. Enquanto levavam a libertina, dona Henriqueta conversava com o Libório farmacêutico:

- Dizem que é homem santo...

- Pode ser santo, - respondeu Libório - mas fede de enxofre como o próprio satanás...

- Vinte anos sem banho...

- Fede em vida... - completou Libório.

- É a santidade - continuou dona Henriqueta. - Ninguém vai ao paraíso sem primeiro passar pelo inferno...

- De lá ele trouxe o cheiro de enxofre... - ironizou o farmacêutico.

- Mas como ele veio parar aqui? - perguntou a puritana.

- Chegou no Peri há três ontontem. Paresque veio com o pessoal do circo, onde faz mágica. Veio também procurar um primo dele, um tal de Osama, que mora no Quianduba.

- Não é um barbudo?

- Ele mesmo - concordou Libório. - tem um filho magricela com o mesmo nome do pai. Na feira apelidaram de Osa para o piquenozinho.

- O que ele faz, esse tal de Osama?

- Ninguém sabe. Dizem que na terra dele era um bicho feroz, um homem malino que fazia coisa ruim. Agora, depois que casou com a Rosana, filha do Leôncio, ele passa o dia no fundo duma rede brincando com um macaco prego. Chega tá parrudinho de tanto açaí com camarão... É mestre numa peconha e vive dando risada, coisa que disque ele nunca fazia na terra dele... A coisa mais medonha que fez depois que chegou aqui foi sair de diabo numa pastorinha da professora Elza...

- Bendita é a nossa terra, que transforma lobos em ovelhas... - concluiu dona Henriqueta quando chegavam à pensão da Maria Coroa.

- Ele está aí! - gritou um.

- Vamos chamar o mago, para tirar o mal desta mulher! - ordenou dona Henriqueta dirigindo-se severa à turba.

Enquanto entravam para chamar o esoterista, a turba começou a entoar cânticos. Faziam barulho e acordaram os hóspedes, que foram para a rua ver do que se tratava. Nessa mesma hora passavam na esquina os passageiros do Peri que chegavam na viagem daquela noite e também paravam para olhar. Alguns chegavam à pensão querendo hospedagem e ficavam na rua vendo a confusão.

Doloca nua fascinava e despertava sentimentos animalescos em todos aqueles homens. Ali, diante da pensão da dona Maria Coroa, tribunal e penitenciária, diante de seus juízes e carrascos, ela ainda seduzia.

Um médico, Peter Romeu Pinto, que tinha desembarcado do Peri e chegava a Abaeté para trabalhar com o pai, o urologista H. Romeu Pinto, arriou as malas na calçada do hotel, chegou bem perto do tumulto e ficou olhando. Bastou o médico bater os olhos naquela mulher em perigo para perceber que seu destino estaria doravante irremediavelmente ligado ao dela.

Peter Romeu Pinto, embora hipnotizado por aquela visão tratou de agir, temendo pelo pior. Apanhou uma pedra bem grande e avançou pelo meio da turba enfurecida em direção à Madalena abaeteense.

- Esperem! Esperem! - berrou o jovem médico. - Esperem! - continuou.

A turba agitada foi apanhada em cheio por aquela intervenção e o frenesi moralista quase orgiástico foi cessando, como uma ventania que vai aplacando sua fúria contra uma montanha poderosa. O professor Vladimir, assistente romeno do jovem Pinto, posicionou-se estrategicamente na penumbra, levando a mão à pistola prateada que sempre carregava dentro do colete, preparando-se para algum confronto. Desde que enfrentara os comunistas na Transilvânia sabia como precaver-se.

Diante do silêncio que se fez, Peter Romeu continuou.

- Aquele que nunca errou, que atire a primeira pedra! - disse solene.

Joaquim português da padaria mirou bem e aplicou violenta pedrada na cabeça de Doloca, que desmaiou imediatamente banhada em sangue. A turba recuou horrorizada.

- Desgraçado! - gritou Peter. - Nunca erraste na vida?

- Nunca desta distância, ora pois! - retrucou o português.

- Você a matou, jumento! - gritou Peter Romeu, precipitando-se em direção a Doloca. Ajudado pelo doutor Vladimir, o filho do doutor H. Romeu Pinto depressa envolveu a cabeça de Doloca na própria camisa e a carregou, saindo pela cidade em busca de ajuda. A escumalha dispersou em silêncio, covardemente, sentindo-se ameaçada de cumplicidade em um homicídio. O mago pigarreou e voltou para dentro da pensão.

Doloca estava bem, em paz, observava a agitação em torno do seu corpo, mas não sentia dor. Sabia que era ela quem estava ali, carregada por aquele desconhecido, e observava tudo do alto. E foi subindo cada vez mais alto, até chegar num céu repleto de claridade, cheio de nuvens, num resplendor onírico. Flutuou por entre as nuvens, livre. Passou flutuando diante de um velho bronzeado, de barba branca e aparência austera, que escrevia com uma pena de águia em um grande livro colocado sobre um púlpito. O velho levou um grande susto ao vê-la.

- És tu! - berrou o velho, que parecia o porteiro do céu. Imediatamente puxou uma alavanca que pôs em marcha algum mecanismo de sucção que sugou com força o ar para baixo. Doloca ainda viu o velho fazendo o sinal da cruz enquanto se afastava. Olhando para baixo, viu a garganta laranja de um vulcão se aproximando vertiginosamente e nele mergulhou direto para o fundo, indo cair num tacho quente.

Quando boiou cuspindo o breu quente deu de cara com um ser medonho, chifrudo, vermelho, que escrevia num livrão negro, usando tinta vermelha e uma pena de urubu.

- És tu! - berrou o ser medonho, aquele conhecido como Pedro Botelho, Coisa Ruim, Graúdo, Calça Preta, Cramulhão, Chifrudo. Apavorado, o medonho puxou uma alavanca e o tacho foi arremessado para cima com Doloca dentro.

Quando a perdida acordou estava em sua cama de cetim vermelho. Peter segurava seu pulso e Rosa,  a serviçal, estava de pé ao lado dela carregando uma bandeja com sucos e sanduíches. Doloca espreguiçou-se e sorriu. Era persona-non-grata no céu e no inferno e não adiantava deixar este mundo nem nas piores horas de tédio. O jeito era servir-se dos homens, deles desfrutando até o fim dos tempos.

Doloca tentou virar-se na cama. A cabeça ainda doía, mas ela começou a achar interessante fingir-se de doente até aquele bonitão estar no papo...


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA, À BEIRA DO RIO - FERNANDO PESSOA

As flores da Condessa

CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 12