CHEIRO DE DEFUNTO

 

(Do livro Deolinda e outros fantasmas amazônicos)

Trafegar por aqueles caminhos enlameados rasgados no meio da floresta densa, percorrendo o que só com muito otimismo se poderia chamar de uma estrada, era o trabalho extenuante dos dois. Motorista e cobrador viajavam em um ônibus bem cuidado, limpo, com manutenção em dia e cortinas azuis nas janelas, mas estavam abandonados à própria sorte quando saiam, ainda de madrugada, para as demoradas viagens que faziam todo dia, às vezes ficando pelo meio do caminho; em outras simplesmente dormindo dentro do ônibus em alguma beira de estrada, ouvindo os seres da noite que zoavam da capoeira, porque não haveria tempo para retornar à garagem e iniciar outra jornada no dia seguinte.

No inverno as coisas pioravam. Caminhos poeirentos tornavam-se uma sequência interminável de atoleiros, por onde o carro chafurdava. À noite, fatigados, ainda precisavam remover a lama que emporcalhava tudo, no interminável entrar e sair dos passageiros. Naquela tarde havia chovido logo cedo e um certo frescor percorria o ônibus que trafegava o mais depressa que podia, balançando com o sobe desce nas panelas de lama que a estrada de terra lhes oferecia. Viam pelo grande para-brisas curvo nuvens escuras cobrindo a floresta, no prenúncio de mais chuva que viria quando as trevas da noite chegassem.

Os passageiros dormitavam naquele embalo; meia dúzia de caboclos a seguir o motorista na sina de viajar pelo meio da floresta. Um velho ressonava de boca aberta, exibindo os dentes de porcelana que de tão alvos sugeriam naturalmente a prótese paga em prestações no sacamuela da vila. Sua mulher sentara-se do outro lado do carro, incomodada pelo ronco do companheiro. Dois meninos com cara de índio sentavam em silêncio no fundo do carro e um bebê arredondado sugava o peito magro de uma jovem que contemplava triste pela janela a floresta monótona que esparramava-se ao redor.

A viagem prosseguia assim, ao balanço do carro pelo lamaçal, quando Oziel percebeu aquelas pessoas de pé na beira da estrada fazendo sinal de parada. Começou a reduzir a velocidade e olhou preocupado para o cobrador a seu lado quando viu o caixão. A mudança de velocidade tirou os passageiros da letargia em que viajavam e todos começaram a se espichar nas cadeiras para ver melhor o quadro.

Carregado com cuidado nos ombros de quatro homens altos e fortes, o caixão branco era bem visível de longe. Ao seu redor, parecia uma comitiva de retirantes carregando trouxas, caixotes de pau, paneiros com galinhas e sacos de pano, muitos sacos feitos do mesmo pano que estava em vestidos, camisas e lenços de cabeça; uma chita colorida que contrastava com o branco encardido das sacas de açúcar usadas nas calças e saias.

- Defunto... - murmurou Oziel.

- Vamos levar...? - disse Jesus, o cobrador, querendo ouvir um não.

Como muitos na linha, tinham medo de transportar defunto. Dava azar, diziam que trazia sofrimento e doença. Pelo menos um motorista havia enlouquecido depois de transportar um caixão; encosto, com certeza. Ou uma palavra mais difícil, obsessão, conforme haviam diagnosticado no centro espírita, onde o infeliz tentara a cura.

Oziel sabia o que significava a linha de ônibus para aquela gente. Esquecidos no meio da floresta, era para eles o único meio de ligação com o mundo que existia depois da estrada. No carro iam os passageiros, mas ia também a produção das roças e os xerimbabos. Iam igualmente os doentes e, pelo menos, cinco mulheres já haviam parido sobre os bancos largos e macios do fundo do carro. Na viagem de volta transportava também o querosene para a iluminação, sacos com mantimentos, ferramentas e remédios e um dia teve que levar um forno de torrar farinha amarrado sobre o teto. Vez por outra transportavam um caixão, pois o único campo santo da região ficava na vila e os caboclos achavam que um sepultamento no meio do mato, como bicho, era maldição.

Uma vez um apanhador de açaí caiu de uma palmeira alta e morreu. Como era verão e ainda não havia a linha pela estrada teriam que levá-lo de barco até a vila, seguindo por um igarapé que estava seco e só encheria quando as chuvas chegassem, em dezembro ou janeiro. O morto começou a feder e não tiveram jeito senão enterrá-lo ali mesmo, dentro de uma rede, direto na terra, feito bicho. Dizem que ele passou a rondar as poucas casas dos colonos da localidade onde se sucedeu o fato, estraçalhando xerimbabos, provocando cachorros e cavalos e assombrando as crianças durante o sono. Pelo menos uma vez foi visto como fantasma dentro de uma casa, causando pânico e gritaria. Um dia, muitos anos depois, já com a linha de ônibus pela estrada, foi fabricado um caixão especial onde os restos do infeliz, exumados em uma cerimônia conduzida por um pajé, foram colocados dentro de sacos plásticos e levados para sepultamento definitivo no cemitério da vila. As manifestações sobrenaturais acabaram nesse dia. Oziel pensava nessa história quando parou o carro e abriu a porta. Começou a chover fino e, com medo de encharcar o caixão, o motorista mandou que Jesus arrumasse um lugar no fundo do carro.

Os passageiros foram acomodados nos primeiros lugares e em seguida o caixão foi embarcado. Levado com cuidado pelos carregadores, foi amarrado sobre os encostos dos bancos, no final do carro,

- Tá bem preparado…? - perguntou Oziel àquele que parecia ser o chefe do cortejo, temendo alguma emanação deletéria dos despojos, o que já havia acontecido em uma viagem.

- Foi a velha Dica quem preparou… - murmurou o homem meio constrangido.

Oziel só assentiu em silêncio.

A velha Dica era uma daquelas mulheres que moravam isoladas na floresta, numa casinha afastada e solitária; uma daquelas que a misoginia da santa inquisição teria rapidamente transformado em pira. Conhecia ervas e bichos; luas e estações do ano; remédios, cataplasmas e benzimentos. Sabia coisas a respeito do tempo e do espaço, do frutificar e do adormecer da floresta e a época certa para colher seivas curativas. Defumava a casa regularmente, espraiando ao redor certos perfumes que excitavam a imaginação dos que passavam por ali. À noite, era possível ouvi-la cantando antigas e desconhecidas cantorias da floresta. Os que a respeitavam sabiam que era invocação dos seus guias. Aos maledicentes parecia convocação de demônios para maléfica assembleia. Com o mesmo sucesso, a velha Dica curava e aconselhava; salvava estimados e punia desafetos. Para preparar os corpos, selecionava seivas aromáticas e cascas de árvores que eram trituradas e guardadas em potes de barro fechados com breu, aos quais ela adicionava com parcimônia meio copo de um precioso formol comprado dois anos atrás em Belém. Com algodão que colhia em algodoeiros cultivados ali perto, impregnado pelas resinas, preparava tarugos que serviam para introduzir nos orifícios naturais - seis no homem, sete na mulher; ambos números cabalísticos e paracelsianos - tamponando-os e impedindo qualquer vazamento dos fluidos internos no momento em que começasse a deletéria dissolução. Ela mantinha estoque regular desses tarugos em casa e os preparava regularmente. Coincidência ou não, sempre que era vista preparando alguém morria.

O ritual de preparação de um cadáver parecia vindo direto do Egito antigo. Dona Dica o fazia sozinha trancada com o cadáver em um quarto que depois seria fechado por sete dias. Por uma portinhola feita na porta, serrada para a ocasião - era por isso que muitas portas nas casas por ali conservavam aquelas tristes aberturas - entravam e saíam os materiais destinados ao processo, que envolvia uma longa cerimônia fúnebre, não tão longa talvez quanto a do poderoso Ramsés, cheia de gestos simbólicos, cantorias e aromas. Inicialmente o corpo era lavado com água tirada do Igarapé mais próximo misturado a cachaça pura, processo acompanhado de cantos e orações. O corpo era enxugado com panos brancos nunca usados, que seriam secados ao sol e depois queimados, as cinzas enterradas junto com o falecido ou falecida. Depois o corpo era tamponado e envolvido com ataduras impregnadas nas resinas aromáticas dos potes sendo, nessa ocasião, fixados os membros antes do rigor mortis. Às vezes, por conta das alterações na cor da face, em mortes que levavam a excessiva palidez ou amarelidão; ou mesmo devido ao horrendo negrume provocado por uma apoplexia fulminante, os rostos defuntos eram pintados e maquiados. Em seguida, dona Dica recebia a mortalha preparada pela família - muitas famílias mantinham uma mortalha preparada em casa para essas ocasiões - com a qual vestia o defunto e o deixava em repouso sendo velado sobre a mesa da cozinha levada para a sala, para onde o corpo era carregado por três homens que passavam por um rápido ritual de purificação. Depois ela cuidava do caixão.

Enquanto preparava o corpo a mulher dava instruções para a confecção do caixão, com tábuas largas que sempre sobravam de alguma edificação. Pronto o ataúde - apenas serrar e pregar eram tarefas comuns de carpintaria às quais ela atribuía pouco valor simbólico ou ritualístico - ela, enquanto o corpo era velado, tratava de forrá-lo e adorná-lo. Pronto, mandava colocá-lo de pé e dava sete voltas ao seu redor rezando em uma língua antiga. Depois o defumava e mandava que o levassem para colocar o corpo enquanto ia até sua casa apanhar as flores que cultivava para isso e que selecionava conforme o morto; sexo, idade, importância... Com elas adornava o falecido já embarcado para a última viagem, fazia uma oração final e despedia-se, liberando para o sepultamento. Voltaria com sete dias, para purificar a casa e abrir o quarto, antes do que eram interditadas certas ações e seguidos preceitos destinados a garantir paz ao defunto e aos que ficassem.

- Quem era…? - disse Oziel falando baixo ao colocar o ônibus em movimento, puxando conversa com o líder do cortejo.

- Filha de um compadre meu… - disse o homem tristonho. - Tá no mato tirando madeira e não sabe ainda. Chega com oito dias… Era a filha adorada dele, acho que vai endoidar quando chegar… O pessoal vai se preparar pra segurar ele… - completou quase chorando.

- Do que foi…? - perguntou Oziel.

- Deu umas coisas nela… Febre, uma dor, depois começou a vomitar sangue, enfraquecer e morreu… Coitada… Dezoito anos...

Oziel ficou em silêncio. Conhecia tragédias como essa acontecendo todo dia na floresta. Ali homens e mulheres, como bichos, estavam sujeitos às implacáveis leis da natureza que controlavam populações, incapazes de escapar aos frios vaticínios de Darwin e Malthus. Já vira povoados esvaziados pelas diarreias e por febres misteriosas. Enfrentava-se lombrigas e solitárias com a mesma dignidade fatalista com que se encaravam onças e serpentes, podendo-se, ao final, morrer observado de longe por um demiurgo insensível, devorado por algum inimigo oculto nos intestinos ou por um feroz predador da floresta. O fantasma da fome, apesar da floresta abundante, era onipresente e sem uma dieta rica em determinados nutrientes, chegava-se famélico e raquítico aos trinta anos com aparência de, pelo menos, mais vinte. Vira viúvos desesperados diante de mortes que seriam evitadas a fórceps ou, no máximo, por uma cesariana. Sem a ciência e a tecnologia da civilização moderna, na floresta as leis eram outras e morrer impotente e resignado era a regra.

Viajaram em silêncio e, quando o rio apareceu ao longe, começou uma discreta agitação dentro do carro, com os passageiros apanhando seus pertences e se preparando para desembarcar logo. O rio ficava ao final de uma descida um pouco íngreme e Oziel sempre procurava controlar a velocidade com um pouco mais de atenção. Uma vez ficara sem freios e só não tinha ido parar dentro d’água porque conseguira jogar o carro para a capoeira e engatar-se nas enviras, de onde os passageiros saíram meio zonzos, chapinhando por um igapó particularmente mais cheio em razão de uma invernada rigorosa.

Para chegar ao seu destino, a vila do outro lado do rio, os passageiros teriam que desembarcar, andar por uns duzentos metros de estrada de piçarra que descia íngreme até a beira do rio e apanhar barcos. Oziel saiu e ficou perto do carro, observando do alto aquele triste cortejo.

Os passageiros caminharam depressa para embarcar na primeira bajara e fugir da companhia do caixão. Os que acompanhavam o féretro ficaram para trás, pois caminhavam devagar, e resolveram esperar um barco maior, com tolda, onde todos pudessem se acomodar melhor. Foram parar em um boteco que tinha um telhado grande aberto sobre um piso cimentado onde algumas mesas, cachorros e bancos serviam aos que esperavam a travessia. Uma grande mesa de bilhar ocupava o centro da construção, riscada com borrados traços de giz e coberta por um desbotado pano verde. O dono do boteco ofereceu dois banquinhos onde foi apoiado o caixão e começou a servir os passageiros com pastéis, cocadas, caldo de cana e água.

Oziel observava de longe a cena. Olhava o rio, coberto por uma bruma fria e acinzentada, com a vila silenciosa do outro lado. Era um rio com cerca de meio quilômetro de largura, com águas escuras e lentas. Diziam que era muito profundo e abrigava seres monstruosos. Uma balsa vinha até a vila uma vez por mês transportando combustíveis. Nessa ocasião, em troca de uma boa gratificação os tripulantes, depois de descarregarem, usavam a balsa para atravessar coisas maiores, como veículos, material de construção e gado. Foi numa dessas ocasiões que o implacável saber de dona Dica punira friamente um tripulante que fizera mal a uma jovem da vila.

Eles costumavam deixar a balsa à noite para namorar as moças da cidade e dançar com elas num barracão de festas que ficava em uma palafita, bem ao lado da rampa onde a balsa atracava. Em uma noite festiva uma das donzelas havia sido deflorada por um moço de convés embriagado e meio fora de si. Com a partida da balsa parecia que a história cairia no esquecimento, mas o pai da jovem queria casamento e foi queixar-se a dona Dica. Na viagem seguinte uma comissão de homens fortes conduziu o deflorador à presença da entendida, diante da qual ele negou a autoria do crime e recusou casamento, alegando ter família em Belém. Oziel recordava a história do alto do barranco, olhando o mesmo rio, imaginando a balsa atracada do outro lado.

Com a recusa, dona Dica aconselhou maternalmente o jovem, para que repensasse a condição de vergonha que caíra sobre a jovem e a assumisse como marido atencioso e cordial, mas ele permaneceu irredutível. Sem alternativa a entendida mandou que o levassem embora e trancou-se em casa, começando a recitar certas orações em um ritual que durou a noite inteira. No dia seguinte o rapaz não levantou-se da rede. Encruou. Dava pena ver aquele homem forte, acostumado a puxar cabos na atracação da balsa, enrodilhado dentro da rede chupando dedo, como um débil mental. Assim ele partiu para Belém na balsa e nunca mais apareceu ali. Na volta, perguntado pelo caso, o comandante desconversou e eles, discretamente, passaram a evitar a saída para a diversão noturna, partindo o mais rápido que podiam. Quanto à jovem, foi embora estudar em Belém, formou-se professora normalista, casou - disseram que muito bem, com um funcionário da alfândega - e nunca mais voltou à vila.

Quando finalmente um barco grande chegou já escurecia e o caixão foi rapidamente embarcado. Era a última travessia do dia. O dono do boteco também embarcou, deixando o comércio todo fechado, com um único lampião aceso - bem abastecido para durar a noite toda - e o banheiro destrancado. O motorista e o cobrador ficaram sozinhos daquele lado do rio, tendo a noite caindo sobre eles como uma negra e espessa mortalha brumosa. Jesus, que havia ficado no boteco tomando uma sopa, entrou no ônibus e pegou sua maleta, dizendo que ia tomar um banho.

Oziel entrou para armar as redes onde dormiriam, presas nos tubos que passavam sobre as cabeças e onde os passageiros seguravam quando viajavam em pé. Notou um inquietante cheiro de defunto dentro do carro, um odor químico, meio alcoólico e adocicado, misturado a perfume de flores murchando. Um odor inconfundível de morte e decomposição. Chegou a abrir as janelas mas o odor persistiu e ele teve que fechá-las logo, pois os terríveis bijogós começavam a voar para dentro à procura de sangue. Conformado, armou as redes, apanhou sua maleta e saiu. Um prato de sopa bem quente havia ficado sobre uma mesa a sua espera. Ele tomou rápido, antes que ensebasse, e foi banhar já no escuro. Jesus deitou-se na rede dentro do ônibus e ligou um radinho de ondas curtas que carregava sempre. Os acordes de O Guarani ressoaram roucos pela floresta, dizendo que em Brasília eram dezenove horas.

A chuva aumentou um pouco, picotando nas janelas do ônibus com um ruído de pedriscos atirados nos vidros. Jesus embalava-se lerdo esperando o tempo passar, apreciando a quase penumbra que a solitária luz no bar irradiava. Viu pelo para-brisas quando Oziel voltava do banheiro, a lanterna relampeando fachos de luz por sobre a lama da estrada e criando feixes de gotículas prateadas quando varria a chuva fina e persistente. O motorista cobria-se com a toalha de banho e segurava suas roupas junto ao peito, onde esperava mantê-las secas. Entrou correndo.

- Arre! - disse Oziel tiritando enquanto sacudia a toalha da cabeça.

Largou as roupas sobre um dos bancos e apagou a lanterna. Ficou assim, na pouca luz, esfregando as mãos para aquecer-se. De um pulo deitou-se e atirou pesada coberta sobre o corpo. Era uma daquelas grossas mantas de viajante, cinza com duas listas vermelhas paralelas, feita de um tecido que lembrava uma flanela bem grossa. Era muito confortável naquele frio implacável, formando um casulo grosso e impenetrável ao frio, à umidade e - ó bênção! - aos mosquitos hematófagos. O segredo era cobrir-se todo, tapando com a manta olhos, ouvidos e narinas, deixando só um pedacinho de abertura para respirar. Mesmo pousando sobre a manta, os bijogós não conseguiam perfurá-la com a afiada zagaia, terminando por abandonar seu pobre alvo e sair em busca de outro mais fácil, como as inúmeras mucuras e macacos que, sem manta, sofriam sob o assédio dos pernilongos. Ficou em silêncio, recompondo-se do frio, enquanto ouvia as notícias da Voz do Brasil no rádio do Jesus.

O cobrador tossiu um pouco, levantou e apanhou a lanterna.

- Onde tu vai? - indagou o motorista.

- Obrar um pouco na retrete... - respondeu vestindo uma capa de chuva.

- Te prepara... - resmungou Oziel enquanto Jesus descia do carro e saía em direção aos fundos do bar.

O que chamavam de retrete era uma quadrado de lona em torno de quatro varas fincadas, coberto com palha de ubim, onde havia um buraco no chão de terra sobre o qual assentava uma caixa de madeira com um orifício circular onde o obrante sentava-se. Ficava a alguma distância do bar, pois os dejetos excrementícios, sem qualquer tratamento, exalavam um mau cheiro até boa distância. Vez por outra o dono do bar atirava lá dentro uma mancheia de cal, o que atenuava um pouco o miasma. Era um lugar deletério, que atraía seres de todo tipo, particularmente moscas de chifres, que ali desovavam, e enormes besouros coprófagos - alguns imensos e assustadores telecoprídeos - e pelo menos uma mulher havia saído de lá gritando quando um desses, um cerambicídeo gigante, enroscara-se em seus pelos pubianos. Além desses animais, uma legião de insetos habitava a retrete, incluindo formigas de todos os tipos, saúvas cortadeiras, de fogo, doidivanas e tanajuras, além de baratas, lacraias e eventuais escorpiões. Jesus sabia muito bem onde estava metendo o rabo; em uma noite escura, fria e chuvosa como aquela era verdadeiro ato de fé sentar-se sobre aquela bocarra imunda e perigosa. Era entrar, evacuar e correr para limpar-se onde houvesse um pouco de luz e privacidade; naquela noite os fundos solitários e silenciosos do bar. E foi o que ele fez.

De volta para o ônibus, Jesus sacudiu-se para afastar o frio, a lama e as últimas gotículas de chuva. Oziel ainda estava acordado, pensando na vida, quando o cobrador passou debaixo da rede dele e foi deitar-se.

- Dorme logo, que se tu ficar passando aí embaixo eu é que não durmo... - resmungou o motorista.

Sem falar nada, Jesus acomodou-se e logo ressonava enrodilhado na sua manta. A chuva aumentou mais ainda.

Oziel começava a adormecer quando passaram debaixo da rede dele, saindo do carro. A ondulação sob a rede o fez despertar.

- Arre, Jesus! - protestou. - Tu não dorme hoje, home!? Vamos sair de madrugada...

Sem resposta de Jesus, Oziel julgou que o amigo, envergonhado, não ousava replicar aos protestos, e acabou por aquietar-se, tentando novamente adormecer.

Pouco depois passaram novamente debaixo da rede de Oziel, desta feita caminhando em direção ao fundo do carro; algo volumoso e liso arrastou-se por sob a rede. Oziel sentou na rede de um pulo, sacudindo o punho da rede do parceiro que estava a pouco mais de dois palmo da rede dele.

- Porra, Jesus! - gritou. - Eu quero dormir, caralho!

Olhando mais firme na direção do amigo, Oziel viu um vulto. Era o cobrador, sentado na rede, olhando para ele.

- Não fui eu... - murmurou Jesus trêmulo. - Também passaram debaixo da minha rede. Aquilo veio lá do fundo...

Oziel sentiu o cheiro de defunto e arrepiou-se todo. Jesus não ousava olhar para trás. Lembraram da morta, do caixão, temiam que ela estivesse sentada lá atrás, como fantasma os observando. Temiam que ela lhes fizesse algo. Destacada da proteína animal condenada à putrefação a morta, agora espírito mas ainda ligada a este mundo, talvez estivesse ali dentro com eles. Talvez tivesse viajado com eles no carro meio vazio, sentada invisível em um dos bancos. Apavorados, motorista e cobrador agiram por impulso.

De um pulo os dois apanharam as redes e mantas e saíram correndo chapinhando pela lama até a segurança reconfortante de um bico de luz no bar. Por pouco não gritaram, mas poderiam muito bem ter berrado a plenos pulmões que não adiantaria, pois não havia ninguém para socorrê-los ali. Tremiam, não se sabe se de frio ou medo. Depressa enrolaram-se nas mantas para se aquecer e pensar melhor em algo que não fosse voltar para dormir no ônibus.

Sondando o bar, não encontraram escápulas onde pudessem armar as redes. Os caibros estavam muito alto e eles temiam cair dormindo das redes. Quase três metros seria morte certa. O jeito foi a mesa de bilhar. Oziel, tecnicamente o chefe de Jesus, abriu sua rede sobre a mesa e deitou-se. Com uma calça de lona enrolada improvisou um travesseiro e cobriu-se da cabeça aos pés. Jesus ficou ao lado dele, de pé, pensando em algo parecido. Acabou por juntar três mesas de madeira e deitar-se do mesmo jeito.

O ônibus ficou lá na chuva, de porta aberta, mergulhado na umidade invernosa daquela noite amazônica. O vapor frio embaçava seus vidros, mas os dois evitavam olhar na sua direção.

Reunindo imensa coragem, Oziel afastou um pouco a coberta e virou-se para o carro.

Pareceu ver uma silhueta sentada junto a uma das últimas janelas, uma silhueta miúda e imóvel. O motorista arrepiou-se mais uma vez e, de um pinote, virou para o outro lado, procurando não ver nada e procurando dormir à força, sem pensar em mais nada.

Nunca mais dormiram dentro do ônibus em beira de estrada.

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