CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 7

 ESTUDANTES E ESTUDANTES

Há estudantes e há estudantes, todos o sabemos.

Essa expressão é muito usada em escolas para justificar as diferenças entre os alunos, em rendimento, caráter, comportamento, em todo o complexo do “demasiadamente humano” que constitui um mistério, ora interpretado por diferenças em anatomia cerebral, ora por dessemelhanças nas origens familiares, ora por destino, ora por carma. Aqui, porém, quero falar em estudantes & estudantes a partir de duas imagens que ilustram bem o dinamismo estudantil dos anos 60 e 70 em Abaeté. 

Em tempos de guerra fria, de nacionalismo exacerbado pelo governo de exceção, da “ameaça comunista”, da “integração nacional”, da grande influência do pensamento conservador na sociedade (que, entre outras coisas, ajudou a engendrar o golpe de 64) o ambiente de polarização alcançava extremos. E chegou naquele pequeno burgo cravado à margem direita o Tocantins.

Me disse um amigo que, quando estourou o golpe, ele - trabalhador - morava ao lado de uma residência burguesa. A casa dele - de madeira sem pintura, sem forro, comprido chalé com retrete no quintal e construído sobre esteios que elevavam o piso cerca de 1 metro do chão - contrastava com a casa ao lado, em alvenaria, forrada e pintada com Paredex (lembra? "Ypiranga é a tinta!") piso de taco e são caetano; “bangalô do seu fulano”, como se dizia então. E a madame da casa ao lado, falava alto que cabeças rolariam com a revolução e cantarolava “está chegando a hora…”. Meu amigo era militante de esquerda, seguidor de nossos comunistas históricos do tempo do Estado Novo, como o Chile, o Leopoldo e mesmo o Dr, Novaes, o mentor e executor das passeatas comemorando a queda da Bastilha todo 14 de julho. Recebia aulas de formação política ministradas por uma juíza da comarca de Abaeté e pelo promotor de justiça local, e fico imaginando esse ambiente estimulante para intelectuais debaterem sobre a realidade, ainda que fosse ao redor de uma mesa coberta de copos com gim e cerveja, em noites chuvosas no bar do Nicola. 

Ouvia calado, destemido, mas com certa apreensão as ameaças, principalmente depois que correu pela cidade a notícia do que aconteceu ao Jesus Loureiro e ao seu livro. Os caguetas da revolução eram conhecidos; entre eles alguns empresários, gente ligada ao exército, funcionários públicos sedentos de poder e vingança e, pelo menos, um padre.

Foi nesse ambiente de polarização, palavra muito usada atualmente, que foram produzidas estas fotografias. Uma imagem vale mais que mil palavras, mas somente se nos faz pensar mais de mil coisas a dizer, e foi assim que pensei nelas ao refletir sobre as simpatias e antipatias dos tempos em que vivemos.

A primeira é de um grupo de estudantes a caminho de algum evento estudantil.


Estão na praça do operário, de onde se embarcava para o sul do País através de um “caminho de onças”, como disse um figurão que percorreu a Belém-Brasília. Nele estão Luís Lopes, atualmente ex-prefeito de Abaeté, até hoje um militante nos movimentos sociais e de valorização do magistério, sendo ele mesmo professor da rede pública estadual, óculos à Lennon, cabelo rebelde, barbicha, expressão atenta e pronta para o debate. A seu lado, lendo e sorrindo, talvez sabendo de notícias da revolução, aquele cujo pai replicou na Amazônia o nome do general russo que, com a ajuda do "general inverno", venceu os fascistas: Zhukov, ou Roberto Osório. De lado, um outro jovem, ainda não identificado, apenas observa. Bolsas pelo chão, calças jeans e sapatos resistentes, como botas, cabelos revoltosos, rebeldes, cheios do espírito de luta, indispensáveis para o engajamento na causa.

A outra imagem é de um desfile de sete de setembro, no auge da ditadura, quando se ufanava o dia da pátria em carros alegóricos e em todo um simbolismo que vinha direto de Brasília e era cuidadosamente fiscalizado por olhares atentos de alcaguetes bem treinados, prontos a reportar qualquer ameaça ou afronta aos ideais da revolução. Com sagacidade, entretanto, pelo menos uma vez os delatores foram ludibriados, quando um estudante - após passar a noite inteira pintando o corpo com purpurina cor de bronze - desfilou como estátua da liberdade, com manto, coroa, tocha acesa e livro aberto. Isso poderia ser interpretado como bajulação aos americanos - o que empolgaria os lambaios da revolução - mas poderia ser desfrutado, deliciosamente, como um silencioso clamor por liberdade, o que fez os revolucionários comemorarem mudos a oportunidade de enganar os trouxas.

Mas falando do carro alegórico, fazer a leitura das mil palavras que valem a imagem é algo fascinante:

Um slogan típico da revolução (“Comece você a construir um Brasil grande!”) cobria um arco-íris unicamente verde e amarelo; nada de diversidade! Três belas jovens seguram cartazes onde estão escritas palavras que enfatizam valores tradicionais, como AMOR, ESTUDO e FÉ. O menino no lado esquerdo carrega uma placa, onde está a palavra TRABALHO. Seu traje de um membro inferior de alguma força armada pode sugerir que, afinal, trabalho é para os da base da pirâmide, menos aquinhoados na escala social. Quanto aos oficiais das três armas, nenhuma placa, nenhum slogan, nenhuma lembrança de deveres, pois eles estavam ali, ao redor das meninas e dos valores, como garantistas, para proteger futuras mães, freiras ou professoras, assegurando que ninguém ameaçasse aquela ordem, com cada um no lugar que lhe cabe em uma escala social já naturalizada e cujo questionamento eles interditariam de pronto. Nada de desordem, balbúrdia, questionamento; nenhuma ameaça àqueles que julgavam-se “os senhores”: dos lares, das instituições, das riquezas, da nação.

Ok. gastei pouco mais de mil palavras para falar de duas imagens, o que pode ser lacônico demais, já que cada uma equivaleria a mil delas. Mas por enquanto é suficiente. Sei que haverá muito mais a dizer por quem contemplar estas imagens e lembrar de um  detalhe que não comentei; uma cor, um cheiro, um sapato apertado, um olhar furtivo, um sorriso de lado, sons e cores que compõem a vida; a vida congelada para sempre em sais de prata sobre papel, nesse milagre físico-químico que é a fotografia. 

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