CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 8

 O FOOTING


Disse-me certa vez o Luís Solano, nosso conterrâneo conhecido como “O repórter do planalto”, indignado com o estado em que encontrou a rua Siqueira Medes durante uma reforma no Mercado Municipal, que aquilo era um ultraje a uma rua que já fora lugar de passeio para as famílias. Na ocasião achei a declaração de um certo exagero, fruto talvez do entusiasmo e do fervor abaeteense que o Luís conservou a vida toda, afinal o passeio, o “footing” das famílias, poderia ser realizado em outros lugares, talvez mais aprazíveis, como as praças centrais da cidade, próximo a sorveterias e a lugares para ver e ser visto. Para quem conhece a Siqueira Mendes de hoje, no centro da cidade, fica difícil imaginar alguém se deliciando em passear por aquela rua estreita e comercial, sem qualquer coisa mais extraordinária a lhe servir de atrativo para contemplação (exceto, talvez, o belo jardim vertical do Dr. Dirceu) ou para uma fotografia com amigos e familiares.

O "footing", o passeio informal e leve, incluído nas práticas do "flâneur", o caminhante e observador da modernidade, está entre os hábitos mais comuns nas grandes cidades, em lugares de concentração de pessoas. A rua João Alfredo, por exemplo, no quarteirão da “quatro e quatrocentos” (depois Lobrás), hoje um retrato na parede, era um desses lugares em Belém. Ali ficava a Leão de Ouro, a Carrapatoso, a Livraria das Edições de Ouro; dobrando uma esquina havia o Café Santos e quem seguisse adiante pelo centro da cidade, pela própria João Alfredo ou pelas ruas adjacentes, estreitas e tortuosas, chegava à praça das Mercês, a um pulo da Presidente Vargas, outro lugar tradicional do passeio a pé. Havia assim, dentro do “footing”, espaço para o “flâneur”, para o “flirt” (O flerte, a paquera!) e para todos aqueles costumes europeus importados há tão pouco tempo, no momento em que a “Belle Époque” amazônica substituía os velhos costumes ibéricos na ex-colônia e passava a definir Belém como a “francesinha dos trópicos”.

Em Abaeté, nos anos 70 e 80, a Barão do Rio Branco, entre as praças, era um desses lugares. Donzelas passeavam de uma praça a outra nos sábados à noite, de vestidos longos e sapatos altos, flores nos cabelos e perfumes da Zona Franca trazidos pelos regatões. Os rapazes usavam calças boca-de-sino afiveladas acima do umbigo, com sapatos de três andares (Sabe o que isso significa?) e, embora algo já em franco abandono à época, cabelo com Trim ou Brylcreem, moda que voltaria depois com o gel fixador para cabelo, brilhante e colorido. Isso acontecia algumas décadas antes na Siqueira Mendes.

A fotografia mostra um grupo de mulheres, entre crianças, jovens e senhoras, fazendo o passeio nessa rua, talvez em meados dos anos 60. Estão na esquina com a Pedro Rodrigues, entrando em um quarteirão estreito, diante do velho Grupo Escolar de Abaeté, rumo ao canto do Mercado. Ao fundo é possível ver o casario enfileirado, com alguns dos chamados "bangalôs", residências dos mais abastados de antigamente, com suas fachadas imponentes e dois andares (a despeito da expressão original importada significar casa pequena com apenas um andar, em estilo indiano, muito comum na América do norte, aqui a expressão passou a designar casas de ricos, com construção mais elaborada). Pela forma como se vestem poderiam estar a caminho de uma confraternização, da missa, de um evento social de fim de tarde, mas as sombras nos pés revelam: Era meio-dia.

Em qualquer época do ano, o meio-dia é um horário impróprio para passeios em Abaeté. Como as sombras não estavam atrás nem à frente delas, provavelmente era um equinócio, março ou setembro, meses pouco amenos de qualquer forma, embora naquele tempo não houvesse asfalto para aquecer o ar e as árvores estivessem por todos os lados. Vestidas de forma especial, não era certamente um dia comum. Talvez estivessem voltando para casa, depois do compromisso social pela manhã.

As roupas, mesmo elaboradas, como a da menina da extrema esquerda, sugerem leveza e frescor, escolhas certas para um lugar quente. A pessoa que conservou esta imagem, sem dúvida um trabalho primoroso de “garimpagem” e de extrema importância para a nossa história, fez uma intervenção sobre ela, numerando e identificando as personagens, coisa que antigamente era feita romanticamente em azul Parker, com anotações no verso, datas e dedicatórias. Na era dos bits e bytes, a nota foi mesmo no arquivo escaneado, a ferro e fogo. Com essa ajuda ficou fácil identificar quem passeava.

A liderança cabia à dona Celina Contente, esposa de um personagem histórico importante, Joaquim Mendes Contente, farmacêutico e político, profundamente ligado à Igreja Católica e lançador da pedra fundamental da igreja matriz em 1933, quando foi nomeado construtor pelo Arcebispo de Belém em razão do espancamento do padre Magalhães, acontecido pouco antes, que motivou a interdição de Abaeté, condenada a ficar sem assistência sacerdotal. Ela é a única das fotografadas que não está olhando para a câmara, embora pareça esboçar um sorriso sutil, meio de lado.

Exceto a Analeo (a “número 7”), todas foram apanhadas no meio de um passo, as mais altas aproveitando as pernas para passos mais largos, particularmente Terezinha Nogueira, de porte imponente, pose marcial e belos cabelos curtos. Infelizmente ela não ri, mas era frequente que a fotografia tomada dessa forma, um registro “instantâneo”, despertasse desconfiança no fotografado. A presença de uma câmara, por exemplo, já fez com que índios cobrissem o rosto, mesmo nus. Antes das “selfies” a fotografia, ainda longe de ser banalizada, envolvia um ritual de preparação diante do retratista. Para certas mulheres, o riso fácil poderia depor contra a moral e os costumes, daí a expressão firme de algumas. Homens também buscavam respeito diante da lente firmando o semblante, posando de poderosos e másculos.

Curioso como elas se agarram, braços dados, vencendo o desconforto de serem registradas na película, talvez a timidez, o temor do desrespeito. Não sei se foi só a pose, mas seria interessante vê-las caminhando pela Siqueira Mendes dessa forma, todas de braços dados, passo certo, quase um marchar, um desfile, conduzidas por dona Celina.

Essa imagem tem “atmosfera”, um cheiro de “tempo bom”, uma certa elegância que sugere rituais sociais longamente esperados, momentos especiais, mesmo que sob o sol do meio-dia. Evoca a memória de uma cidade em que tudo fluía conforme os ciclos naturais, ao sabor dos ventos, das marés, das luas e estações do ano. Os compromissos eram saboreados, demoradamente almejados: a missa de domingo, a Festa de Conceição, o Sete de Setembro, uma quermesse na escola, um Baile das Flores, um aniversário, um casamento, a visita a um recém-nascido, as condolências. Momentos únicos para vestir aquela roupa especial guardada no baú de cedro cheirando a patchuli, antes, muito antes do próprio tempo acelerar, dos eventos se sucederem em uma convulsão de viagens, festas e “selfies”, de se perder até mesmo o próprio sentido do festejar, de ser obrigatório comemorar sem motivo e parecer feliz a qualquer custo.


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