AQUELAS COISAS NA FLORESTA

Naquela noite Rosa ficou sozinha na beira da estrada olhando o Simca Chambord afastando-se alegremente em direção a um baile na cidade, com as meninas a bordo. Ficou observando demoradamente a poeira levantada e as luzes vermelhas das lanternas traseiras do táxi cada vez menores até serem engolfadas pela escuridão da noite fria de fevereiro.

Rosa olhou para o céu enquanto soprava a fumaça do cigarro que terminara de fumar e amassava sob o salto alto a bagana fumegante. Uma linda noite fria e estrelada em fevereiro. Um momento especial em que, apesar das poucas nuvens vogando em direção ao poente, o céu excepcionalmente claro deixava visível a via láctea em toda a sua beleza, esparramando estrelas pelo céu. A dona do bar contemplou a fachada iluminada em neon recém-inaugurada onde o nome ROSA SELVAGEM piscava em silêncio para a madrugada. Aquilo lhe havia custado um bom dinheiro, mas era um marco naquela beira de estrada, à boca do ramal do Mata-Fome.

Todo mundo na cidade já sabia do brilho colorido no Rosa Selvagem e alguns até iam lá, no que fora outrora um lugar mal-falado, que a maledicência provinciana dizia cheio de mundanas e de mulheres de riso fácil, para ver o grande botão em neon que, num arranjo elétrico de tubos quase invisíveis quando apagados, desabrochava em rosa vermelha cheia de paixão e desejo. Alguns até paravam para tomar um aperitivo e o mais pedido acabou por ser um Bloody Mary feito pela Rosa com o que ela chamava de "ingredientes secretos", que provocavam copioso suadouro e repentina elevação da pressão e da potência orgânica, o que Dr. Novaes atribuía simplesmente à feliz alquimia da mistura precisa de álcool e gengibre.

Rosa entrou no bar, fechou a porta da frente e nela colocou pesada tranca. Apagou a iluminação do lado de fora, desligando o neon, e deu uma olhada na gaveta do caixa, raspando a renda do dia. Conferiu o dinheiro com certo enfado e o guardou num pote de porcelana que ficava atrás de um baleiro antigo cheio de doces. Foi até a vitrola e colocou um disco para tocar. Gregorio Barrios ocupou aquele espaço com o vozeirão de sempre.


Duerme, Duerme mientras yo te arrullaré
Con el hechizo de mi canción 
Que para ti canté.
Sueña, Sueña tranquila mi dulce bien
Que contemplándote con pasión
La noche pasaré.

Yo bien quisiera que nada apartar-nos
Pudiera jamás,
Porque mi amor y mi vida
Y mi todo eres tú,
Muñequita ideal.

A música caribenha encheu o ambiente e ela serviu-se de um pouco de vermute rosado com gelo, bebericando lentamente. Sentada em uma cadeira antiga de palhinha, diante de uma mesa de cedro polido, Rosa afrouxou um pouco o sutiã rendado e descalçou os sapatos altos, contemplando o bar vazio ao som do bolero que lhe acendia recordações. Depressa as lembranças foram se sucedendo num jorro impetuoso: sua chegada a Abaeté do Tocantins fugindo, ainda no ventre da mãe, da seca nordestina poucos anos depois de 1915, o marido, o flagrante dele com a outra, o trabalho como cozinheira, cantora e vedete de boate, os muitos amores passageiros, o fim do regatão e a quebra das boates da cidade, a mudança para o Mata-Fome e a criação do Rosa Selvagem com três meninas muito mais jovens do que ela, que eram as que atendiam os fregueses.

Pensando na vida, Rosa levantou e foi para o quarto onde dormia, deixando a vitrola tocando em um volume mais alto. Entrou por uma porta que ficava logo atrás do balcão e seguiu por um corredor estreito e penumbroso, passando pelos quartos das meninas até o seu, que era o último antes da porta que dava para o quintal e também o único com o teto já forrado. Abriu a porta do quarto destrancando a fechadura com uma chave grande de aspecto antigo, acendeu a luz e entrou, trancando-se em seguida.

O quarto não era grande, tendo o estritamente essencial para uma mulher solteira e solitária. Uma cama de madeira torneada, com lençóis claros e almofadas de cetim rosa, um guarda-roupa antigo de cedro, com pernas altas terminando em patas de leão, gavetas com frentes esculpidas, e um grande espelho na porta. Ao lado dele, uma penteadeira, também de cedro, com banqueta almofadada. Sobre ela, muitos vidros de perfumes, potes com produtos de beleza, caixas de maquiagem, escovas de cabelo e pentes arrumados com displicência dentro de uma jarra de vidro transparente. Havia ainda um cabide de madeira escura com bracinhos torneados cravados em um suporte desproporcionalmente grosso e um pequeno biombo branco de madeira com venezianas estreitas que lhe davam um ar de leveza e simplicidade, atrás do qual ela costumava trocar-se.

Rosa baixou a taça com a bebida sobre a penteadeira, foi até o biombo e despiu-se. Vestiu sobre a roupa íntima um penhoar rosa e sedoso, com o qual atravessou o quarto em direção à penteadeira, detendo-se diante do espelho.

Do espelho observava-lhe uma mulher de pouco mais de cinquenta anos, seios já caminhando à flacidez, ventre e pernas pouco a pouco descarnando, cabelos obrigatoriamente tingidos de loiro, olhos de uma tristeza profunda. Ao longe escutava a vitrola cantando-lhe o doce lamento castelhano. A solidão daquela noite, o bolero, o vermute, o frio da madrugada, tiveram um efeito inebriante sobre ela, que irrompeu em lágrimas de melancolia e saudade ao contemplar aquele corpo que já fora algo muito diferente daquilo que via ali refletido. Gregorio Barrios começou a cantar Una Mujer e mais lágrimas rolaram.

Examinou-se longamente, mergulhada em reminiscências. O pequeno corte ao lado do seio direito lembrou-lhe do pavoroso nódulo que descobrira certa vez, perto dos quarenta. Outra cicatriz, bem maior, perto do ombro direito, lembrava do marido ciumento e agressivo. O ventre e o umbigo bem talhados eram muito elogiados por Ramón, doce companheiro que o regatão trouxera do Peru e levara de volta quando a pobreza se instalara definitivamente em Abaeté. Ao cruzar os braços sobre os seios, tentando levantá-los para revitalizar quase trinta anos, observou mais demoradamente as mãos sacrificadas pelo trabalho manual; mãos de trabalhadora, de mulher que precisara um dia enfrentar a possibilidade real da fome e das privações e vencera.

Ainda com os braços cobrindo os seios, sentou-se diante da penteadeira. Apanhou um algodão impregnado de uma solução alcoólica e perfumada, e com ele começou a remover a pesada maquiagem. Contemplava com ainda mais melancolia e conformismo estoico e resignado, o que emergia de sob a grossa camada de pó levemente tingido que lhe cobria face.

As rugas que apareciam, as pequenas manchas, colorações e descolorações inevitáveis na face eram, como o corpo, um calendário vivo sobre o qual algum demiurgo misógino, severo, arrogante e insensível assinalara em brasa o passar dos tempos e as datas dolorosamente memoráveis. Até mesmo os óculos de leitura, que lhe davam um ar de vovozinha quando prendia os cabelos em coque sobre a nuca, longe de serem artefato de charme eram decorrência do enrijecimento natural dos olhos que vem com a idade e dificulta a leitura, outra cicatriz inconfundível tatuada pelo fluir do tempo sobre um corpo.

Quando a vitrola parou de tocar, o mecanismo automaticamente recolheu o braço do toca-discos e desligou o aparelho. O silêncio tomou conta do bar, um silêncio estranho, sem os ruídos naturais da noite, sem os grilos, os sapos coaxantes e os morcegos que estalavam sua cegueira alucinada nos gritos agudos com que rompiam a escuridão. Rosa percebeu esse estranho e desconfortante silêncio parando repentinamente de remover a maquilagem. Olhou em volta, franziu o cenho e uma pontada de angústia enrugou-lhe a alma. Procurou com mais atenção identificar os ruídos da noite, mas viu-se envolvida por um silêncio tão profundo e impenetrável que, pensou, talvez houvesse perdido a audição. Começou a cantarolar um bolero para constatar que ainda ouvia. Baixando o algodão em um cinzeiro vazio sobre a penteadeira, apanhou uma escova e, ainda cantarolando, começou a escovar lentamente os cabelos.

Cantarolava para vencer o temor que repentinamente a dominara. Sussurrava palavras em castelhano apenas para sentir-se acompanhada e viva. Tomada por súbita e inconsequente coragem apanhou a taça, levantou-se, caminhou até a porta do quarto e destrancou a fechadura. Saiu em seguida para o corredor, devagar em direção ao bar, pisando com leveza nas pantufas macias e silenciosas que lhe davam a sensação de caminhar no vazio.

No bar, trocou de bebida, colocando gelo em uma taça e uma dose generosa de seu vinho preferido, aquele que ganhara de um marinheiro americano que havia chegado a Abaeté para embarcar madeira num navio. Ainda cantarolando, voltou pelo corredor em direção ao quarto, caminhando displicente enquanto sorvia com volúpia a bebida aromática.

Quando chegou ao meio do corredor ela de repente parou. Algo, na porta que dava para o quintal, chamou sua atenção, algo sutil e imponderável, que só uma estranha intuição poderia perceber. Ficou parada ali escutando. Respirava devagar e o silêncio era tamanho que podia ouvir a própria respiração, lenta e profunda, acompanhada pelos próprios batimentos cardíacos, que lhe soavam como uma pulsação ritmada nas têmporas, uma palpitação trêmula que lhe dava consciência da vida orgânica fluindo em seu corpo. Prestando mais atenção aos ruídos que só ela ouvia, pôde perceber um outro bulício, igualmente lento, suave e ritmado.

Rosa seguiu até o fim do corredor e o ruído estranho aumentou. Agora era nítido. Algo pulsava encostado à porta do quintal pelo lado de fora, algo vivo, respirando com sibilado fôlego, num impulso primitivo de sobrevivência.

A mulher parou a cerca de um metro da porta. Como que percebendo que ela estava ali, algo roçou a porta, algo pesado e grande, ao mesmo tempo primitivo e consciente. Ela pôde ouvir um lento rosnar entrecortado pela respiração densa. Em seguida chamaram-na.

- Rosa... - disse do outro lado da porta uma voz que era humana e animal ao mesmo tempo: mistura de fala e rosnado que tornavam indistinto seu emissor; se gente ou fera. Mas seu nome era inconfundível. Soava claro, apesar de gutural.

- Rosa... - ouviu de novo, seguido desta feita por nítido rosnado que terminou em um gemido. - Me salva... - completou com profunda dor o ser suplicante que lhe falava do outro lado da porta acrescentando um sofrido uivo.

- Quem é? - sussurrou Rosa

- Sinésio Levi... - gemeu o ser.

- O judeu... - murmurou Rosa recuando um passo. Era o judeu que se mudara com a família para a casa grande no fim do ramal.

Homem estranho, vestia-se como um judeu ortodoxo e sua figura, que lembrava mais povos semitas, deserto, cabala e o golem, aparecia no ramal de terra batida que cortava a floresta como uma assombração; materialização surrealista capaz de assustar, toda de preto com a barba densa e uma cartola que, por aquelas bandas, somente fora vista no cinema Imperador coroando ora Zé do Caixão, ora o Conde Drácula. Vivia trancado em casa, sobrevivendo, talvez, da proverbial economia dos judeus, não plantando, criando ou colhendo, mas, paradoxalmente, vivendo até bem, em comedida abundância. Logo criara-se no ramal do mata-sete a certeza de que ele tinha parte com o demo ou, pelo menos, que manipulava o oculto, talvez até mesmo fabricando ouro como um alquimista, o que era sugerido pelos fumos que às vezes emanavam de uma casinhola que ele mandara edificar nos fundos do seu terreno, por cantorias em uma língua estranha que eram ouvidas tarde da noite no Mata-Fome e pela opulência rosada, pícnica e porcina dos filhos bem cevados.

Naquela noite, aquele algo que resfolegava do outro lado da porta dizia-se o judeu, o ser misterioso do fundo do ramal. Rosa voltou a indagar

- Sinésio? O judeu? - disse quase num sussurro.

- Sim... - rosnou a criatura de fora.

- Que queres... - murmurou Rosa.

- Abre a porta... - gemeu aquilo num uivo. - Tem piedade e me salva com tua compaixão... - completou com terrível sofrimento a voz animalesca, quase não conseguindo pronunciar a frase.

Rosa levou a mão ao peito e recuou apavorada. Lembrou-se da espingarda que um freguês havia deixado em penhora depois de se apaixonar pela Florinda e, com ela, ter vivido dias e noites de embriaguez, loucura e amor carnal, no que dilapidara tudo o que havia amealhado com a coleta de castanha na floresta até restar-lhe somente a arma de fogo e uma caixa de tabaco prateada, trabalhada, mas de pouco valor.

Enquanto o ser resfolegava do lado de fora, a mulher agiu. A arma estava no bar, sob o balcão, e os cartuchos dentro de um pote onde guardava tabaco para os fregueses. Rosa correu até o balcão, deixou a taça sobre ele, encheu a mão com os cartuchos e agachou-se. Retirou a espingarda de sob um pedaço de cobertor velho e ela reluziu sob a luz fraca da lua que entrava por uma vidraça. Com cuidado, mas quebrando uma unha da mão que tremia, ela carregou dois cartuchos e engatilhou a espingarda com um ruído seco. Retornou deslizando sobre os joelhos em direção à porta.

Ainda ouvia a respiração ritmada e densa do ser do outro lado.

- Não entendo... - sussurrou a primeira coisa que lhe veio à mente.

- Minha maldição... - gemeu o judeu. - Será quebrada esta noite por ti... - continuou entre rosnados - ... se tua piedade me der um copo de água...

- O que és tu? - perguntou Rosa. - No que te transformaste...?

- As criações mortas na lua cheia... O medo de sair na lua cheia... O vulto no ramal... Sou eu... O labisonho... Sétimo filho homem... - finalizou uivando alto, um grito agudo e plangente que trespassou a porta e a fez estremecer.

- Não posso... - respondeu Rosa.

- Abre a porta... Por piedade... - gemeu o ser. Foi a última coisa que disse.

O que aconteceu em seguida atestou que não mais havia um ser racional do outro lado da porta. A metamorfose se completara e a fera já triunfava sobre o racional e humano. Uma explosão.

Rosa foi atirada longe pelo corredor quando aconteceu. O estrondo de algo forte e poderoso chocando-se contra a porta.

Atordoada, tentou colocar-se de pé mas conseguiu somente ficar sobre os joelhos e apontar a espingarda para o corredor, balançando o cano da arma a esmo. Milagrosamente, a porta resistira, sustentada pelo poderoso par de trancas de acapu que a cruzavam em cima e embaixo. Estraçalhara-se, no entanto, em cerca de um palmo perto do chão, por onde uma garra animalesca já penetrava procurando o vazio.

Rosa olhou horrorizada para as unhas curvas e afiadas que rompiam mais um pedaço da porta e para elas apontou a arma puxando o gatilho. A detonação potente arrancou a espingarda de suas mão e atingiu-lhe o ombro e o queixo com violento coice. Rosa caiu ao chão atordoada, meio ensurdecida pelo estampido, mas ainda ouviu o lancinante grito de dor do lado de fora antes de perder os sentidos.

Quando acordou a manhã já avançara um bom par de horas.

Rosa levantou cambaleando e foi até o espelho. Grandes hematomas manchavam-lhe o ombro e o rosto, e uma dor, como de ressaca, atordoava-lhe o juízo.

Lavando a cabeça, enrolou-a numa toalha e, ainda segurando a espingarda, saiu da casa pela porta grande da frente, que ela abriu com cautela, primeiro entreabrindo a porta e olhando cuidadosamente pela fresta e depois, tomando coragem, saindo para a manhã ensolarada e fresca pelo orvalho que evaporava da floresta. Engatilhou a espingarda e contornou a casa devagar, indo até a porta que dava para o quintal. O que viu ali a encheu de pavor.

Longos sulcos rasgavam a madeira, como se uma potente ferramenta os houvesse entalhado, fendendo com impressionante facilidade as grossas tábuas que formavam aquela porta densa e antiga. Eram sulcos tão profundos que chegavam quase a trespassá-la totalmente. Impossível calcular a força e resistência titânica daquelas ferramentas; unhas, no entender de Rosa, que recuou subitamente levantando a arma ao sinal de um rumor mais intenso que lhe chegou da floresta.

Ao recuar dois passos, a dona do bar percebeu a trilha de sangue que partia daquele lugar e penetrava na mata.

Ficou algum tempo ali, ouvindo a passarada saudando o sol que emergia tímido por entre a floresta densa, criando raios de luz brilhante ao passar pelo vapor que subia aos borbotões da mata úmida. Depois se virou, olhou novamente para a capoeira fechada que estava agora a sua frente e contemplou o mistério que se perdia dela no meio daquelas árvores gigantes.

Tomando mais coragem, caminhou até bem perto das árvores que formavam o círculo de mata ao redor do Rosa Selvagem, seguindo a trilha de sangue gotejante que apontava para o começo de uma trilha escura e sinuosa. Ali parou.

Assustada, começando a sentir a terrível impressão de que era observada, ela dali não passou. Recuou correndo para dentro do bar, reforçou a heroica porta que resistira bravamente - todavia por pouco -, empurrou uma mesa pesada contra ela e ficou sozinha no salão esperando as meninas chegarem da festa.

Elas não tardariam.


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Perto do meio-dia, da porta do Rosa Selvagem, Rosa e as meninas viram o judeu passar caminhando para a beira da estrada. Levava uma mala grande de madeira e era acompanhado pela mulher e pelos filhos, cada um com sua pequena carga, que seguiam silenciosamente em fila. Não olhou para os lados e não cumprimentou ninguém. Embarcaram no ônibus que fazia a linha para Belém e foram embora. Não se soube na ocasião se voltariam da viagem ou não, o que provocaria depois nos moradores do ramal do mata-sete, notadamente entre os mais corajosos, o desejo secreto e impronunciável de visitarem a casa discretamente, enquanto estivesse vazia, coisa que, afinal, ninguém teve coragem de fazer. Quase um ano depois, apareceria no Mata-Fome um caminhão misterioso, cheio de homens falando uma língua estranha, que limpariam a casa de móveis e pertences, e desapareceriam, abandonando a terra e as edificações aos caprichos da mata, que não tardaria a avançar sobre tudo, apagando para sempre os efêmeros vestígios do que quer que tenha acontecido um dia ali.

Sinésio Levi, o judeu, tinha o braço na tipoia e não falou com ninguém.

Rosa contara a história para as meninas, que ouviram em respeitoso silêncio, principalmente o momento em que ela contava ter acordado no chão do bar. Achavam que o vermute e o vinho misturados haviam feito aquilo, embora não soubessem explicar o que acontecera com a porta. Margô falou em uma queda diante da porta, numa história rocambolesca que explicaria a porta dilacerada e os hematomas mas a interpretação, de tão fantástica, acabou abandonada.

Quando embarcou, Sinésio sentou-se cabisbaixo em uma janela, por onde a Rosa e as meninas o viram pela última vez.

O ônibus partiu e, da janela, virando-se, Sinésio olhou fixamente para Rosa, que o observava. A dona do bar arrepiou-se ao encarar aquele olhar indefinido entre o medo e o remorso. Aquele olhar desconcertante foi a última coisa que Rosa viu do judeu. Ela mesma, pouco tempo depois, concursada pelo governo do Estado do Pará, mudou-se para Belém e passou a trabalhar como datilógrafa em uma repartição.

Daquelas coisas na floresta ela guardou apenas fugaz lembrança, que viraria breve memória de um pesadelo. O Mata-Fome foi abandonado, como se amaldiçoado e salgado pelos moradores, e a mata tomou conta de tudo, afinal.


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