CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 9

 O PIB

Certa vez mostrei esta imagem ao amigo Celso Nery. Ele deu um sorriso, examinou mais de perto os personagens e declarou que nela estava quase todo o PIB (Produto Interno Bruto) de Abaeté dos anos 60 e 70. É um animado grupo de empresários com seus amigos e convidados em festiva celebração na praia de Beja, o caribe abaeteense daqueles tempos. Regada a uísque importado e vinho de garrafão (será que era vinho, na terra da cachaça?). Bem… observando com atenção alguns copos, parece haver espuma neles o que pode sugerir a popular cerveja mesmo. E tinha churrasco, pois foi possível ver alguns espetos exibidos com volúpia alcoólica pelos comensais.

Curioso como, até os anos 70, os parâmetros para medir a riqueza de alguém estavam restritos a algum ouro pelo corpo (a imagem, infelizmente, não permite ver os dentes em detalhe...), talvez uma Rural Willys e uma Televisão Telefunken (ou RQ Colorado!) de 20 polegadas em preto e branco. Talvez uma radiola Philips também…

O ouro é possível ver em alianças grossas, cordões, pulseiras e relógios, mas os eletrônicos, de tão raros e preciosos ficavam em casa. Media-se a riqueza, ainda, pelo tamanho da espinha de peixe suspensa no lugar mais alto possível da casa, de onde desciam os sinais para ver as emissoras de televisão de Belém, a Marajoara (Canal 2) e a Guajará (Canal 4). E pelo piso de taco encerado e são Caetano, no bangalô do centro da cidade: casa de seu Fulano, dono de X; seu Ciclano, dono de Y; seu Beltrano da coletoria… Eu tinha uma tia-avó que pronunciava a palavra bangalô com uma entonação aristocrata como nunca mais ouvi, seja porque a palavra saiu de moda, seja porque nobreza, classe e aristocracia são raros (e até combatidos) costumes hoje em dia.

Os ricos de Abaeté daqueles tempos nunca ouviram falar de Dubai, nem faziam questão de amesendarem-se na praia. Não parece que se exibiam com som automotivo ou que patrocinavam eventos sociais, a necessidade disso veio depois. Tá certo, havia os leilões nas festas de santos, mas isso já era costume antigo. Havia a Assembleia Abaetetubense, que exigia terno, o chamado “passeio completo”... Eram discretos, portanto. Nos negócios, na frugal subsistência, no trato com os filhos (estes, sim, talvez viessem a lavar a burra quando o velho esfriasse sob a terra e eles agarrassem o butim de uma vida inteira de moderação, para daí em diante dilapidarem tudo em uma orgia de desfrute, inconsequência e desmemória...), nas relações sociais secretas (!!!) e nas visitas ao Gigi. Teve um, ausente desta foto, segundo me disseram, que morreu contrabandista, cheio de ouro, terras, dinheiro e companheiras, jamais importunado pelos homens da lei, dada sua modéstia (ou sovinice, se fosse a esposa ou os filhos a definirem…) e generosidade em compartilhar uísque importado e outros mimos com fiscais e possíveis alcaguetes nas festas de fim de ano. Parecia um Sheik, com Dubai particular e direito sagrado ao harém, mas sem ostentação.

Abaeté sempre viveu de comércio. Terra de comerciantes. Com localização privilegiada, na entrada do Tocantins e do Amazonas, defronte à Ilha do Marajó, a curta e segura distância de Belém, cedo revelou-se importante entreposto comercial e ponto de parada obrigatória para toda embarcação que precisasse abastecer-se ou fazer negócios. Isso dinamizou a economia local, unindo comércio, construção naval cheia de expertise e a intensa produção de derivados de cana-de-açúcar, posteriormente restrita ao bem mais valioso dessa cadeia produtiva, a cachaça, decantada nos alambiques vitorianos importados pela prosperidade e cantada em verso e prosa. Tal dinamismo econômico gerou certo desenvolvimento urbano. Creio, pelo que pude observar da história mais recente do Município, que o augo de bem-estar social e econômico (sem, é claro, imaginar que era para todos!) foi atingido no final dos anos 70.

Nesse momento, a feliz coincidência entre razoável infraestrutura, dinamismo econômico (gerado pelos engenhos de cachaça, pelo comércio de regatão e por uma pequena manufatura urbana), serviços básicos de saúde e educação acessíveis, gestão pública competente e honesta e uma população que rondava os 60 mil habitantes, criou condições para que a cidade e o município desfrutassem de relativa estabilidade e bem-estar, sendo visível, nos depoimentos dos que viveram esse momento, certo ar de otimismo em relação à vida e ao futuro.

Quase vinte anos antes, o bispo Giovanni Gazza escrevera em suas memórias (publicadas na forma de um valioso livro denominado Fragmentos da Amazônia) sobre as péssimas condições em que vivia a população local, segundo ele abandonada à própria sorte e ao sabor das intempéries, sem perspectivas de desenvolvimento social e condenada à miséria. Boa parte dessa profunda mudança que se viu em tão pouco tempo foi resultado das ações sociais dos Missionários Xaverianos, uma história que vai ser contada com imagens aqui no blog futuramente. E, claro, de trabalho duro.

Não se pode pensar, contudo, que havia caridade no empreendedorismo daqueles tempos. No capitalismo (ainda que arcaico, sem financiamento bancário nem levando às últimas consequências a exploração e a acumulação) não há lugar para todos. Havia exploradores e explorados, mas é tolice resumir o mundo todo a essas duas categorias antagônicas: o problema da sobrevivência, pura e simples, ainda é o maior de todos os problemas, em todas as sociedades, examinadas por quaisquer teorias econômicas. Em um ambiente onde ainda era possível perseguir o sonho da civilização florestal (aquela onde a produção e o consumo inserem-se harmonicamente nos grandes ciclos de água e energia solar da floresta) muito sobreviviam do extrativismo, ainda abundante. Coletados os produtos naturais, o resto era o velho jogo de barganha pelo máximo lucro, que alguns exercitavam com desenvoltura e não se deixavam explorar, prosperando. Não que fosse fácil. Era duro. Menos custoso era refestelar-se detrás da mesa herdada, acumulando lipídios e mais-valia. Havia, entretanto, os “lugares de fala”. O camaroeiro, o apanhador de açaí, o pescador, o carvoeiro, talvez gravitassem ao redor dos donos de bangalôs, negociando com eles, ganhando espertamente na barganha, mas não tinham direito a entrar na Assembleia Abaetetubense. A não ser como novos-ricos, se fosse o caso. Como sempre tem sido.

No grupo festivo na praia, vemos por um momento certo abrandamento etílico das fronteiras sociais. Senhores, suseranos, lambaios, convidados e serviçais desfrutam de igualdade, brandem suas bebidas e espetinhos, sorriem para o fotógrafo e comemoram com a simplicidade dos velhos dias, das velhas manhãs de domingo na Praia de Beja, que não voltam mais, porque nem praia há mais para voltar.




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