(RE)ENCONTRO NO LENNON BAR

(Do livro Mater Purissima - Histórias de Festa de Conceição
em Abaeté do Tocantins

Vamos fugir? – disse ela com o olhar faiscando.

O submarino amarelo piscava em neon na fachada penumbrosa do Lennon Bar que estava sendo arrumado para a noite festiva. Com o som desligado, que depois tocaria somente Beatles, a música vinha de fora.

A banda, no coreto ao lado, tocava num ritmo bem lento, com caprichos infinitos do pandeiro. O mestre parecia sorver com deleite cada nota, dançando e balançando o corpo na cadência do samba. Os metais reluzentes faziam as vozes do sambista declamando a conhecida letra, que a plateia acompanhava cantando em coro. Era a véspera do dia da festa de Conceição.

Tristeza, por favor vai embora

Minha alma que chora
           Está vendo o meu fim
           Fez do meu coração a sua moradia
           Já é demais o meu penar
           Quero voltar àquela vida de alegria
           Quero de novo cantar

O casal explodiu numa risada alegre, a felicidade juvenil reencontrada depois de tanto tempo.

Foi assim que te convidei, lembra? – disse a mulher ainda rindo. Ele foi parando de rir devagar, sem falar nada, ficando sem graça, tomando consciência do que teria significado aquele convite.

Os dois haviam se encontrado pouco antes na praça, durante um passeio de fim de tarde. Jonas passava logo cedo diante do coreto quando viu a mulher. Ela já o acompanhava com o olhar desde muito longe. Era difícil não ver o homem alto e atraente, visível sobre o mar de cabeças que mal chegavam a seus ombros. Vestia-se com elegância e caminhava devagar, olhando demoradamente para a banda que tocava. Foi assim que ele também a viu e naquele cruzar de olhares eles se reencontraram diante do coreto, trinta anos depois.

Léa.

A conversa continuou depois de um gole da bebida gelada que dividiam naquela noite fria.

Foi assim mesmo que te convidei, lembra…? – repetiu.

Jonas concordou com a cabeça. – Eramos dois malucos – completou sorrindo. – Queríamos fugir com dezesseis anos…

A vida teria sido diferente… – completou Léa.

Melhor? – disse Jonas olhando fixamente para ela.

Diferente… – completou a mulher. – Apenas diferente… – Esperava te ver hoje aqui… – falou sorrindo, mudando de assunto, de um jeito dominador que encantara Jonas no primeiro encontro, no primeiro dia de aula, em primeiro de março, quando ela chegou no ginásio das freiras com uniforme novo, saia plissada abaixo dos joelhos, meias e sapatos de boneca, um enfeite sobre os longos cabelos dourados; uma das pombas-rabudas, como eram conhecidas aquelas estudantes.

As mãos e os cabelos ainda eram os mesmos. O sorriso estava um pouco mais contido. Eram as rugas suaves que apareciam nos cantos dos lábios finos quando ela sorria.

As roupas haviam mudado completamente, sugerindo o modo despojado de uma mulher de cidade grande. Aquela figura de calça comprida, camiseta e tênis contrastava vivamente com o modo como as moças de Abaeté iam para o arraial, cheias de vestidos floridos, sapatos altos com salto agulha, flores nos cabelos, Artimatic, Ramage ou Rêve d’Or e pesada maquiagem. Algumas até de longo. Mesmo Jonas, com sapatos engraxados, calça de linho e camisa de seda azul com mangas compridas, era a antítese da bela e deselegante mulher ali diante dele, na noite alegre de dezembro.

Jonas ficou um tempo em silêncio, calado e sufocado pelas recordações.

Ela pouco se importava com o fato das moças da cidade estranharem suas roupas, consideradas inadequadas para um passeio no arraial. Sorria vendo a curiosidade que a filha da dona Lalá despertava, depois de muitos anos fora de Abaeté.

Fugir… muito romântico… – divagou Jonas ao retomar a conversa.

Era a moda – completou Léa. – As pessoas fugiam para escapar de um casamento arranjado, de pais ferozes, simplesmente para viver uma aventura, uma loucura ou… – parou um pouco encarando Jonas – para viver um grande amor juvenil…

Nós fugiríamos por que? – Provocou Jonas.

Léa ficou em silêncio. Desviou um pouco o olhar; olhou o céu que passava de roxo a um negro profundo na noite fria e sem lua.

Você sabe porque… – disse afinal.

Ficaram novamente em silêncio, trocando olhares, ouvindo a banda, observando o arraial que escurecia e acordava para a noite dos marítimos. De onde estavam era possível ver a barraca da santa, onde entravam cortejos de marinheiros carregando barcos de miriti, pequenas réplicas de embarcações que faziam o regatão na linha do Amazonas. Os maiores e mais ricos vinha acompanhados por uma bandinha tocando marchas solenes. Eles seriam leiloados, geralmente arrematados no leilão pelo dono do barco, e o valor entregue à paróquia.

Teu pai ainda viaja? – perguntou Léa.

Morreu há cinco anos… – disse Jonas olhando o movimento na barraca.

Oh. Perdão… – disse Léa desconcertada. – Sinto muito…

Já me acostumei e superei… – disse Jonas com um sorriso triste. – No início tive uns ataques de medo. Medo de morrer da mesma forma, subitamente, sem chances. Depois aprendi que o que eu sentia era só produto do medo. Medo profundo. Medo de tudo. Medo, muito medo… Me enchi de medo, terror mesmo... Mas agora passou. A dor no peito, a paralisia, a palpitação, falta de ar, não eram sinais da minha iminente morte. Doutor Novaes me ensinou a controlar o pânico e tudo desapareceu. Faz uns oito meses que voltei a dormir a noite inteira, em paz, sem medo…

Léa ouviu em silêncio. Mais uma vez mudou de assunto com autoridade, como sempre fazia.

Esta noite, antigamente, era a mais importante para ti…

Era... – completou Jonas melancólico. – Vinha toda a família para o arraial. Mamãe e minha irmã vestindo longo. Papai com roupa nova; eu na moda… O barco ele arrematava e me dava. Era brinquedo para o ano inteiro…

Léa afagou-lhe o punho com carinho. – Tudo passa… – disse como consolo.

Jonas concordou sacudindo a cabeça. Tomou um gole e calou-se por uns minutos. – E sua vida, como vai? – perguntou depois do longo silêncio.

Formei-me engenheira…

Engenheira! – espantou-se Jonas.

Engenheira química. Projeto fábricas em São Paulo…

Trabalho curioso, interessante… Para uma mulher… – comentou Jonas.

E você. O que faz? – disse Léa sem notar as entrelinhas do comentário.

Sou professor de literatura.

Ela foi direto ao assunto, mais uma vez.

Querias tanto ser escritor… Sabe Deus o que teria te acontecido se tivesses ousado fugir comigo…

Não era fácil para mim…

Casaste?

Separei…

Eu soube em São Paulo. Tua mulher te…

E você? Casou?

Não… Prefiro não casar.

Você continua tão bonita… – disse ele segurando a mão dela. – Não acredito que não queira se casar, ter uma família…

Ela sorriu, deixou Jonas acariciar-lhe a mão por um tempo. Léa fechou os olhos e suspirou. Era uma noite de reencontro. Noite como aquela só acontecia uma vez por ano, na festa da padroeira, quando muitos voltavam para Abaeté e reviam os amigos, os amores e os desafetos.

Vamos até sua casa… – disse Léa quase ordenando.

Jonas sorriu e levantou-se. Ela levantou junto, arrumando a calça sem cinto e puxando um pouco a camiseta. Ele deu uma nota ao Valdemar, decano dos garçons do Lennon Bar, que agradeceu, apanhou uma toalha do ombro e depressa foi limpar a mesa de madeira polida, fazendo sinal para outro casal se aproximar.

Os dois saíram andando devagar pelo arraial ouvindo a banda tocar. Aspiraram um pouco daquele ar perfumado pelas vendas da noite dos marítimos; algodão-doce e pipoca, churrasquinho e cachorro quente. Balões e tacacá. Todas essas coisas compunham uma alquimia profunda, que os atingia e os marcava, fazendo brotar antigas lembranças.

Léa segurou suavemente o braço de Jonas e fechou os olhos, deixando-se conduzir pelo quase namorado de trinta anos atrás. Ele sorriu e caminhou mais devagar, levando Léa como uma dama antiga: diáfana, branca, gélida e trêmula sinhazinha desembarcada de uma nau portuguesa naquela mesma noite, ainda estranha aos calores e humores tropicais. Ela tinha as mãos frias e nervosas, a respiração rápida e estranhamente entrecortada. Jonas notou isso e observou Léa como um analista. Poderia ser a emoção do reencontro, mas ela parecia, agora, ter um olhar perturbado e perturbador: desfocado e ausente. Talvez, pensou, depois de trinta anos, as emoções voltassem de forma incontrolável.

Saíram do arraial e caminharam por uma rua antiga, calçada com ardósia, onde haviam pequenas casas ajardinadas. Eram parte do sonho de um pastor metodista que fundara uma colônia em Abaeté no final dos dezenove e depois fora embora. Ficaram as casas, as pedras da rua e belos postes ingleses de ferro fundido que, naquela noite fria e escura, faiscavam uma luz amarelada por entre a cerração.

A casa de Jonas tinha uma grande árvore à frente, um chorão de tamanho incomum, que curvava-se dando um aspecto sinistro à casa e à rua. Entraram pelo portão baixo e enquanto Jonas tirava a chave diante da porta Léa ficou observando a morada. Estava bem cuidada, com a grama aparada e os vidros limpos. Havia sido pintada recentemente, pois ainda era possível sentir o cheiro de tinta nova.

À entrada da sala, pequena e aconchegante, uma bela bicicleta apoiava-se na parede. Léa tocou a campainha cromada.

Inglesa… – disse Jonas. – Comprei do seu Rosildo, aquele que trabalhava no correio…

Lembro dele… – falou Léa examinando as rodas polidas com cuidado. – Éramos vizinhos… ele cuidava muito bem dessa bicicleta. Nunca imaginei que fosse vender um dia…

Comprou uma motocicleta… – completou Jonas.

Duas paredes da sala eram cobertas por estantes que iam até o teto. Nelas havia muitos livros. Livros e livros. Quando Léa os viu foi até eles e caminhou deslizando lentamente a mão trêmula e fria pelas inúmeras lombadas nas estantes. Depois parou e ficou na sombra, num pequeno vão que havia entre uma estante e outra, roendo as unhas.

É uma casa onde não há crianças, onde se mora só… – disse num sussurro.

Jonas também foi até um canto penumbroso onde ficou em silêncio por um instante, voltado para a parede, com o olhar perdido, como se atravessasse a parede e contemplasse as imensidões.

Morar só… – murmurou afinal desaprovando. – Como posso estar só se eles estão aqui comigo? – disse da penumbra, de costas, sem olhar para Léa. – Como posso estar só se tenho aqui comigo Cervantes, Maupassant, Poe, Machado, Bradbury, Quiroga, Edith Wharton, May Sinclair, Mary Shelley… Eu os ouço sussurrar desses livros. À noite, quando deito, sinto a cama ceder quando um deles sai da estante e senta-se perto de mim para contar um conto… Vivo desacompanhado, mas não só…

Léa saiu da sombra e seguiu na direção do que achava ser a cozinha.

Vou fazer um café para nós… – murmurou. – Escolha um livro para ler para mim…

Depois de mostrar-lhe onde estava o que ela precisaria para fazer o café, Jonas foi até a sala. Abriu a janela e aspirou o ar frio e perfumado. Em seguida parou um pouco meditando diante da estante. Apanhou um livro de contos de Quiroga e sentou-se, escolhendo uma história adequada àquela noite. Uma estação de amor parecia bom. Embora triste, falava de reencontro. Não, pensou guardando o livro de volta. Talvez outro fosse melhor. Um conto de fantasmas, mas sarcástico, de Ambrose Bierce; um que falasse da saudade dos mortos pelos vivos… Talvez A pata do macaco, de W. W. Jacobs... Estava assim absorto quando começou a sentir o cheiro de café fresco espalhando-se pela casa, junto com o cheiro de pão sendo torrado no forno e ovos fritos. Sentiu vontade de chorar ao aspirar aqueles pequenos odores de uma alquimia doméstica que lhe era interditada. Esperou um pouco, mas como Léa não chamou, levantou-se e foi até a cozinha com o livro na mão.

A mesa estava posta e sobre ela as peças de porcelana que Jonas herdara da mãe e que ficavam eternamente guardadas sem uso numa antiga cristaleira de cedro, ao lado do petisqueiro igualmente sem serventia. Linho, prata, porcelana e cristal adornavam a mesa antiga que estava na família havia, pelo menos, cinco gerações. Hipnotizado pela visão da mesa, Jonas não percebeu de imediato que parecia haver outra pessoa além de Léa na cozinha. Uma estranha sensação apoderou-se dele.

A pia ficava recolhida a um canto e da mesa não era possível vê-la bem. Jonas via apenas as costas de Léa, que tremiam suavemente como se ela soluçasse. Ele caminhou um pouco e ela virou-se. Foi quando ele viu o sangue. A camiseta branca estava ensopada de um sangue escuro e abundante que escorria dos pulsos de Léa. Ela sorria insana e abraçava com força a enorme faca de cozinha que reluzia.

Léa… – murmurou Jonas atordoado pela visão.

O que respondeu não era mais Léa. A voz parecia vir de muito longe, rouca e arrastada. As palavras saiam com grande esforço, carregadas de uma dor e um horror difíceis de imaginar. Para Jonas, conhecedor de aterradoras histórias sobre o mal, a loucura e o desespero, o fantástico e o sobrenatural estavam claramente materializados diante dele. Recuou um pouco, pensando em Poe, Schnitzler, Quiroga, e em todas as manifestações da histeria feminina; esse tipo de insanidade que geralmente termina mal. Léa aproximou-se dele devagar, a respiração densa e ruidosa. Esticou os braços e a faca ficou a dois dedos do rosto de Jonas. O sorriso insano tornou-se um rilhar de dentes.

Jonas, vamos embora! – rosnou ela, segurando-lhe o braço com força e aproximando a faca mais um pouco do rosto lívido. – Fuja daqui! – disse mudando o tom para uma voz chorosa e melancólica. – Sei o que vai acontecer. Vem aí uma fábrica de alumínio. Ajudei a projetar. Vai ser no faz-que-dorme. Vão aterrar tudo, drenar o lamaçal, desmatar tudo; sujar e envenenar. Acabar com tudo. A vida aqui vai virar um inferno. Sei disso. Por enquanto é segredo…

Ela voltou a tremer e começou a chorar. Parecia que naquele corpo alternavam-se várias pessoas, como se mudasse constantemente o humor, a personalidade ou mesmo o espírito. Ela continuou, agora arrastando a fala, gemendo cheia de ira e rancor.

O prefeito vai gostar. Vai dizer que teremos progresso, emprego, mas é ilusão. Os grandes da fábrica virão de fora. Daqui sairá meia-dúzia de braçais que logo ficarão doentes e imprestáveis. Vamos! Vai embora comigo atrás do teu sonho, sem olhar para trás!

O último convite foi acompanhado de um salto para diante e do cravar da faca no peito de Jonas. Ele deu um grito e levou a mão à lâmina que quase sumia na carne esfacelada, olhando aterrorizado para Léa que o abraçava apertado e sorria o riso insano. O último riso.

A desatada sangria rápido os drenou e os dois foram escorregando abraçados para o chão, perdendo as forças e perdendo-se num longo e escuro túnel. O sangue tingia as páginas do livro aberto no chão perto deles. Um vento denso, gelado, entrou pela janela aberta e os envolveu no deletério abraço. Junto com o vento veio o mambo que tocava alegre na praça em noite de festa.

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