CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 11

O PETRÓLEO JÁ FOI NOSSO!

Um fato histórico ainda muito vivo no imaginário coletivo dos abaeteenses - pelo menos daqueles que nasceram antes da virada do século! - é a chamada “praga das formigas”, que sucedeu ao espancamento de um sacerdote por populares. É uma história cheia de lances curiosos, que não se encerra nas formigas. Durante um bom tempo a cidade ficou sem padres, amaldiçoada que fora pelas autoridades eclesiásticas. Contam que quando algum padre passasse diante de Abaeté a bordo do navio da Linha do Tocantins, deveria, por ordem do arcebispo de Belém, virar-se de costas para estas terras e rogar alguma praga que sua santa mente fosse capaz de obrar naquele instante. Alguns, mais raivosos, decoravam maldições terríveis antes mesmo da viagem, longas e maléficas imprecações a serem vomitadas sobre a terra de Monteiro. Contam que certa vez um padre chegou morto a Cametá, tendo talvez infartado de ira (fúria, como se diz, envenena o coração...) durante a viagem, e entre seus pertences foi encontrada uma conjuração a Belzebu contra Abaeté, escrita com sangue (ou algo muito ferruginoso) sobre o que acreditaram ser pele humana curtida. Há relatos de homens envolvidos no espancamento do padre, leprosos, a doença bíblica, que viram seus membros apodrecerem lentamente em vida, cadáveres insepultos. Mas a crônica de hoje fala de petróleo e o principal personagem desta história é a usina de luz elétrica de Abaeté, além de formigas, daí o nexo entre uma narrativa e outra.

Foi nos anos 30 do século XX que a energia elétrica chegou. Um bafejo do imaginado e desejado progresso, ainda que para poucos. A usina ficava perto do rio, no final da avenida D. Pedro II (Não lembro agora o nome que essa rua tinha antigamente...

Dentro de um chalé a poucos passos do rio ficava a caldeira, a máquina a vapor, um conjunto de polias que aumentava a rotação e acionava o gerador. E também o quadro elétrico, por onde a usina zunia o seu fogo elétrico azulado para um pequeno conjunto de postes que saía pela cidade, ali por perto.


            Nesta imagem vemos o interior da usina, com dois operários posando junto às máquinas, senhores da tecnologia e da modernidade que chegava. Dizem que o vapor, o aço e a eletricidade mudaram a Amazônia na belle époque. Assim como hoje é o fogo e a motosserra que cumprem tal papel, na virada do século XIX para o XX foram esses três elementos da nascente era industrial os responsáveis pela navegação por nossos rios, pelo melhoramento das condições de vida nas cidades e pelo início da exploração dos recursos naturais, começando a tornar a Amazônia aquilo que é hoje: almoxarifado do Estado nacional padrasto e perverso. E um almoxarifado cujo livro caixa registra somente a saída, jamais a entrada do que quer que seja.

Mas nosso assunto é o petróleo. Então tá.

O caso do petróleo se deu quando a usina de luz já funcionava neste prédio, e não era mais a vapor.


                Ficava onde funcionou escritório da Companhia de Eletricidade do Pará, bem no centro antigo da cidade. Nessa casa rugiam dia e noite dois motores diesel acoplados a geradores maiores. Os grossos postes de madeira, dúzias de isoladores, redes de alta e baixa tensão sugeriam algo mais potente, talvez sujeito a poucas interrupções. Depois de algum tempo ficaria nesse prédio apenas o escritório da Companhia, sendo a geração transferida para a distante (à época) rua Primeiro de Maio, no longínquo São Lourenço.

Às vezes os motores paravam para manutenção, troca de óleo lubrificante, algum reparo mais demorado e a cidade permanecia às escuras. Foi durante um desses apagões que correu a notícia de aparições do chupa-chupa (uma luz misteriosa que atacava pessoas e provocava intensa crise anêmica em suas vítimas) com relatos apavorantes dessas luzes misteriosas no céu, paralisias, desmaios e a dita ausência de sangue. Uma quase histeria dominava a cidade nessas noites sem eletricidade, com recolhimentos compulsórios à segurança do lar. Houve até relatos de contatos imediatos de terceiro grau vividos por alguns corajosos que se atreveram a perambular pelas ruas nas madrugadas. Diziam que um ser peludo e cambaleante, com olhos de fogo, circulava perto de matagais (abundantes na época), o que os incrédulos diziam ser simplesmente cachorros, porcos bem cevados ou mesmo uma preguiça real de consideráveis dimensões à procura de brotos de embaúba. Pelo menos um madrugador falou em um homúnculo rapidamente correndo a abrigar-se em uma toca o que, considerando-se o seu hálito etílico, foi risível. O certo é que pouco tempo depois, com a volta dos geradores e sua posterior substituição por energia hidroelétrica (o que tornou raros os apagões) acabou-se o chupa-chupa, como se acabaram todas as visagens e assombrações de Abaeté. Mas bom, o assunto é o petróleo.

Passo a palavra a um dos personagens de um conto do meu livro DEOLINDA E OUTROS FANTASMAS AMAZÔNICOS (AllPrint Editora, 2017) que narrou a história do petróleo em Abaeté depois de um almoço na pensão da dona Dora. (Ok, quem nunca ouviu falar da pensão da dona Dora, nem da pensão da Maria Coroa, pergunte a alguém com mais de 50 anos). Segue a história:

(...)

O almoço foi frugal. Um grande peixe assado em uma travessa de barro acompanhado por um caldo de peixe com legumes, arroz, salada e farinha d'água. Comemos em silêncio, três desconhecidos que apenas trocavam sorrisos de cordialidade. Na mesa havia uma travessa grande de vidro azul trabalhado cheia de frutas regionais. Experimentei algumas, aprovando o sabor intenso que me lembrava algumas andanças por uma ilha perto de Belém e compras feitas no Ver-o-peso. Ao final foi servido um cafezinho, que disseram ser cordial costume de dona Dora. O bancário saiu para fumar em uma confortável cadeira de balanço no alpendre que havia ao lado da casa, perto do jardim, enquanto o Coletor foi ler um jornal e dormir. Tomei o cafezinho, bebi um grande copo de água fresca retirada de um filtro de barro que havia a um canto e me recolhi para uma soneca de meia hora.

Deitado, pensei na vila e na pensão. Tudo ali era rústico e espartano. Dona Dora cozinhava na lenha e não tinha geladeira. A comida era sempre feita no dia, em quantidade certa para os hóspedes, com produtos disponíveis ali mesmo, na vila e nas ilhas que ficavam do outro lado de um rio que passava por ali e desaguava no Tocantins. A água ficava armazenada em filtros de barro que, com a evaporação natural e a porosidade do barro, a deixavam sempre fresca. Havia conforto ali, embora fosse um conforto que exigia certa adaptação. A vila era muito silenciosa, particularmente aos domingos e a luz elétrica era instável, fornecida por geradores a diesel que rugiam em um galpão perto da agência do Banco da Amazônia, no centro da cidade. Costumava faltar várias vezes durante o dia e geralmente à noite. Com resignação, podia-se desfrutar de uma iluminação fraca e amarelada proporcionada por lâmpadas elétricas. Porém, todas as casas deveriam obrigatoriamente ter algum dispositivo de iluminação alternativo, como o poderoso Petromax, lampiões e lamparinas, velas de sebo, candeeiros a gás e o meu preferido, o Aladim a querosene que me lembrava um vestido de baile lindo e elegante, como era a luz suave e amarelada produzida por ele. Havia um estrategicamente colocado sobre minha mesa ao lado de uma grande caixa de fósforos. Para as emergências, dissera dona Dora ao presentear-me com o mimo.

Uma vez, depois do almoço, já familiarizado com os hóspedes fixos, o Coletor me contou uma história hilariante sobre como a cidade entrara em convulsão quando descobriram petróleo em Abaeté. Disse o homem, simpático e bonachão, que certo dia foram cavar uma fossa em um terreno ao lado da usina de luz. Quando chegaram a alguns metros de profundidade começou a brotar da terra um óleo escuro e viscoso. Do Rio de Janeiro Getúlio Vargas proclamava que o petróleo era nosso, discurso que ressoava nas inflamadas crônicas nacionalistas de Monteiro Lobato reproduzidas por jornais Brasil à fora. O resultado é que aquele óleo da fossa foi proclamado como jazida de petróleo e a multidão acorreu em massa para ver a novidade. Rapidamente a obra seminal de Lobato - O poço do Visconde - esgotou na livraria do Expedito Machado. Era o fim de roças, matapis, e xerimbabos. Abaeté doravante exportario óleo e o prefeito da época desfilava pela cidade prometendo isso, carregando e exibindo um vidro de Emulsão de Scott cheio do precioso betume; o ouro negro, o sangue do século XX. Qual foi a surpresa quando constataram que aquele suposto tesouro era o óleo lubrificante usado e descartado no quintal atrás do barracão da usina de luz que, infiltrado por um enorme ninho de saúvas que quase percorria meia Abaeté, brotara milagrosamente dentro da fossa. Foi decepção completa, vergonha para o prefeito e grande enrascada para a família dona do terreno, que já havia trocado, a crédito, todos os móveis da casa e todos os enxovais confiando na prosperidade que viria com a riqueza mineral da qual ela se considerava a legítima proprietária.

(...)

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