LER RUBEM FONSECA

 Convido com veemência meus leitores para desfrutarmos da obra de Rubem Fonseca. Apenas como um aperitivo publico pequeno trecho de um conto dele, que li meditando, sorrindo e até mesmo gargalhando em alguns momentos. Imperdível!

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A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro

Rubem Fonseca (in Romance Negro e outras histórias)


“Em uma palavra, a desmoralização era geral.
Clero, nobreza e povo estavam todos pervertidos.”

(Joaquim Manuel de Macedo,

Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 1862-63)


Augusto, o andarilho, cujo nome verdadeiro é Epifânio, mora num sobrado em cima de uma chapelaria feminina, na rua Sete de Setembro, no centro da cidade, e anda nas ruas o dia inteiro e parte da noite. Acredita que ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os problemas; solvitur ambulando, diz para seus botões.

No tempo em que trabalhava na companhia de águas e esgotos ele pensou em abandonar tudo para viver de escrever. Mas João, um amigo que havia publicado um livro de poesia e outro de contos e estava escrevendo um romance de seiscentas páginas, lhe disse que o verdadeiro escritor não devia viver do que escrevia, era obsceno, não se podia servir à arte e a Mammon ao mesmo tempo, portanto era melhor que Epifânio ganhasse o pão de cada dia na companhia de águas e esgotos, e escrevesse à noite. Seu amigo era casado com uma mulher que sofria dos rins, pai de um filho asmático e hospedeiro de uma sogra débil mental e mesmo assim cumpria suas obrigações para com a literatura. Augusto voltava para casa e não conseguia se livrar dos problemas da companhia de águas e esgotos; uma cidade grande gasta muita água e produz muito excremento. João dizia que havia um ônus a pagar pelo ideal artístico, pobreza, embriaguez, loucura, escárnio dos tolos, agressão dos invejosos, incompreensão dos amigos, solidão, fracasso. E provou que tinha razão morrendo de uma doença causada pelo cansaço e pela tristeza, antes de acabar seu romance de seiscentas páginas. Que a viúva jogou no lixo, junto com outros papéis velhos. O fracasso de João não tirou a coragem de Epifânio. Ao ganhar um prêmio numa das muitas loterias da cidade, pediu demissão da companhia de águas e esgotos para dedicar-se ao trabalho de escrever, e adotou o nome de Augusto.

Agora ele é escritor e andarilho. Assim, quando não está escrevendo - ou ensinando as putas a ler -, ele caminha pelas ruas. Dia e noite, anda nas ruas do Rio de Janeiro.

Exatamente às três da madrugada, ao soar, no seu Casio Melody de pulso, a Mit dem Paukenschlag, de Haydn, Augusto volta de suas caminhadas para o sobrado vazio onde mora, e senta-se, depois de dar comida para os ratos, em frente à pequena mesa ocupada quase por inteiro pelo enorme caderno de folhas pautadas onde escreve seu livro, sob a grande claraboia, por onde entra um pouco da luz da rua, misturada com luar quando as noites são de lua cheia.

Em suas andanças pelo centro da cidade, desde que começou a escrever o livro, Augusto olha com atenção tudo o que pode ser visto, fachadas, telhados, portas, janelas, cartazes pregados nas paredes, letreiros comerciais luminosos ou não, buracos nas calçadas, latas de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos bebendo água nas poças, veículos e principalmente pessoas.

Outro dia entrou pela primeira vez no cinema-templo do pastor Raimundo. Encontrou o cinema-templo por acaso, o médico do Instituto lhe dissera que um problema na mácula da sua retina exigia tratamento com vitamina E combinada com selênio e o remetera imprecisamente para uma farmácia que preparava essa substância, na rua Senador Dantas, em algum lugar perto da Alcindo Guanabara. Ao sair da farmácia, e após caminhar um pouco, passou na porta do cinema, leu o pequeno cartaz que dizia IGREJA DE JESUS SALVADOR DAS ALMAS DAS 8 ÀS 11 DIARIAMENTE e entrou sem saber por quê.

Todas as manhãs, das oito às onze, todos os dias da semana, o cinema é ocupado pela Igreja de Jesus Salvador das Almas. A partir das duas da tarde exibe filmes pornográficos. À noite, depois da última sessão, o gerente guarda os cartazes com mulheres nuas e frases publicitárias indecorosas num depósito ao lado do sanitário. Para o pastor da igreja, Raimundo, e também para os fiéis — umas quarenta pessoas, na maioria mulheres idosas e jovens com problemas de saúde — a programação habitual do cinema não tem importância, todos os filmes são, de qualquer forma, pecaminosos; e todos os crentes da igreja nunca vão ao cinema, por proibição expressa do bispo, nem para ver a vida de Cristo, na Semana Santa.

A partir do momento em que o pastor Raimundo coloca à frente da tela do cinema uma vela, na verdade uma lâmpada elétrica num pedestal que imita um lírio, o local torna-se um templo consagrado a Jesus. O pastor espera que o bispo compre o cinema, como fez em alguns bairros da cidade, e ali instale uma igreja permanente, vinte e quatro horas por dia, mas sabe que a decisão do bispo depende dos resultados do trabalho dele, Raimundo, junto aos fiéis.

Augusto está indo ao cinema-templo naquela manhã, pela terceira vez em uma semana, com o intuito de aprender a música que as mulheres cantam, Vai embora, vai embora, Satanás, meu corpo não é teu, minha alma não é tua, Jesus te passou para trás, uma mistura de rock e samba-enredo. Satanás é uma palavra que o atrai. Há muito ele não entra num local onde as pessoas rezem ou façam coisa parecida. Lembra-se de quando criança ter ido durante anos seguidos a uma grande igreja cheia de imagens e pessoas tristes, na Sexta-feira da Paixão, levado por sua mãe, que o obrigava a beijar o pé de Nosso Senhor Jesus Cristo deitado com uma coroa de espinhos na cabeça. Sua mãe morreu. Uma recordação difusa da cor roxa nunca o abandonou. Jesus é roxo, a religião está ligada ao roxo, sua mãe é roxa ou era roxo o cetim que forrava o caixão dela? Mas não há nada roxo naquele templo-cinema com leões de chácara que o vigiam de longe, dois jovens, um branco e um mulato, magros, pequenos, camisa social de mangas curtas e gravata escura, circulando entre os fiéis e nunca se aproximando da poltrona dos fundos onde ele está sentado, imóvel, de óculos escuros.

Quando cantam Vai embora, Satanás, Jesus te passou para trás, as mulheres levantam os braços jogando as mãos para trás sobre as cabeças, como se estivessem empurrando o demônio para longe; os leões de chácara de camisa de manga curta fazem o mesmo; o pastor Raimundo, porém, segurando o microfone, comanda o coro levantando apenas um braço.

Neste dia, o pastor fixa sua atenção no homem de óculos escuros, sem uma orelha, no fundo do cinema, enquanto diz “meus irmãos, quem estiver com Jesus levante as mãos”. Todos os fiéis levantam as mãos, menos Augusto. O pastor percebe, muito perturbado, que Augusto permanece imóvel, como uma estátua, os olhos escondidos pelas lentes escuras. “Levantem as mãos”, repete emocionado, e alguns fiéis respondem erguendo-se na ponta dos pés e estendendo ainda mais os braços para o alto. Mas o homem sem orelha não se mexe.

(...)


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