A MANCHA DE TINTA NO VESTIDO

       Era noiva.

Ela perambulava pelas ruas, silenciosamente. Nos lábios um murmúrio, um antigo poema de Byron.

Assim nunca mais vaguearemos

Tão tarde na noite,

Embora o coração continue tão apaixonado.

E a lua continue tão brilhante.

A cidade silenciosa, negra, imóvel. O ar parado. O sono dormido entre lençóis espessos e paredes seguras.

Silêncio na noite fria.

Pois a espada gasta a bainha

E a alma gasta o peito

E o coração tem de parar para respirar

E o próprio amor precisa descansar.

Embora a noite seja feita para o amor

E o dia renasça muito rápido

Nunca mais iremos vaguear

À luz da lua.

Um vulto branco, triste e solitário.

O que mais lembrava sua triste sina não era tanto o vestido de noiva virgem, nem o olhar embaçado, sem brilho. Não era o odor de jasmins ou o estranho rosário de contas perolizadas que carregava, tampouco o mau agouro de avistá-la - ou a sua sombra - dobrando uma esquina em Abaeté. O que mais recordava seu passado triste era aquela mancha de tinta azul, enorme borrão disforme sobre a saia de organdi suíço rebordado de pérolas, rendas e fios prateados. Mancha triste, escorrida de uma caneta Parker temperamental que vazava constantemente. Aquela mancha dizia tudo.

Os mais velhos lembravam da tragédia falando com a boca encoberta, tentando esconder palavras dolorosas. Eles contavam o que tinha acontecido naquela tarde distante de maio.

Noiva, filha de família, casava em maio.

A festa pronta. O Jaze Abaeté contratado para animar - haviam pedido a fantástica soma de dois mil cruzeiros, paga sem regateios pelo pai da noiva - a comida quase pronta, patos, galinhas e perus imolados no ritual que antecedia o doce sacrifício tão longamente desejado por Raimunda, a noiva.

Noiva casava em maio...

O noivo, Alberto, funcionário da única agência bancária que havia na cidade - na rua da delegacia, lembrava um velho senhor ao recordar da história triste - era um modelo de cidadão.

Cavalheiro, cortês, trabalhador, um passado limpo, até fazia uns versos, Alberto era o partido mais cobiçado pelas matronas que educavam as filhas para o lar, o marido, os filhos e o sacramento do matrimônio. Viajava sempre a serviço do banco, invariavelmente retornando com um presente à casa da noiva. Sonhos de valsa, discos do Ataulfo Alves que a noiva tocava na única vitrola de alta-fidelidade que havia em Abaeté, cortes e mais cortes de tecidos finos, joias e perfumes. Não bebia nem fumava. Permitia-se uma cerveja ou uma Grapete, em raras e especiais ocasiões. Haveria de beber algo no dia de seu casamento com Raimunda.

A noiva, aluna normalista do colégio das freiras. A mais estudiosa e prendada. Para alegria das mestras destacava-se no canto orfeônico e escrevera uma declaração de amor ao colégio, belíssimo acróstico bordado em renda e delicadamente emoldurado por madre Josefa, colocado em uma parede especial da secretaria. Moça bonita, a léguas do feminismo e da revolução de costumes, longe da pílula e do biquíni, Raimunda caminhava mansamente para a mesma máquina de entortar mulheres que transformaria aquele anjo encarnado em uma matrona esquecida da alegria de um riso. Moça prendada, vestia o traje simples da pureza e desconhecia o suor do macho, incapaz de visitar fábricas, engenhos, usinas ou oficinas. Quando muito, fazia compras em alguma loja, vigiada de perto pelo irmão mais velho. Raimunda era a mulher de respeito, a dama, a moça, o virginal botão de rosa que desabrocharia em maio. Sempre em maio.

Moça casava em maio...

Mas aconteceu do noivo viajar às vésperas do casamento.

Naquele tempo, chegava-se a Abaeté por três caminhos: de barco, após uma baía medonha; de carro, por um atoleiro borrado entre a selva; e de avião.

O noivo chegaria de avião. Tinha que chegar. Viria no táxi-aéreo que ligava a capital à cidade. Promessa. Quatro da tarde. Mais tardar quatro e meia. Promessa.

Quatro horas, cinco, seis. Raimunda na igreja.

Escureceu.

Havia uma esperança, talvez o vapor da noite. Sete horas correram em vão para o trapiche.

Não era possível, ele era um cavalheiro, um homem honrado, uma reputação a zelar. Noiva casava em maio. Ele haveria de chegar...

Oito da noite e o padre cansou de esperar. Houve um desânimo, um temor. Raimunda calma, como que conformada e vivendo em outro mundo. Os convidados começaram a ir embora. O noivo não aparecera para o casamento.

Dispensaram a orquestra, pagando assim mesmo. Trato é trato. A comida começou a azedar. Maio é um mês quente e comida azeda muito depressa em maio.

Noiva casava em maio...

Um exército de formigas avançou sobre o bolo de três andares, e os insetos devoraram com avidez o glacê branco e rosa. Os noivinhos de chocolate tombaram diante do calor implacável e das formigas famintas.

Dia seguinte, a bebida ainda gelada nos grandes tonéis de gelo, sal e serragem. A comida já azeda foi alimentar os porcos de um vizinho. Os porcos engordaram em maio.

Raimunda percorria os cômodos da casa, estranhamente silenciosa. Acariciava os presentes que ganhara poucos dias antes. Lingerie, joias, um rádio Semp transistorizado, um liquidificador Sunbeam importado, conjuntos de porcelana, bibelôs para enfeitar sua sala, pratarias, lençóis com suas iniciais e as do noivo bordadas com esmero...

A noiva triste folheava as páginas da Cigarra, revendo os modelos de trajes nupciais, o seu vestido, a roupa do noivo, dos pajens, da menina que carregaria sua honra igreja a dentro...

Raimunda enlouqueceu e passou a vagar pela casa na madrugada vestida de noiva. Ia de sala em sala, tocando as paredes, acariciando os retratos, flores, cortinados, recitando desde já o poema de Byron que seria o seu epitáfio.

Escrevia longas cartas ao noivo, falando de saudade, dos planos, dos filhos que teriam, das viagens que fariam juntos, dos bailes e do aniversário do primeiro filho. Foi ao escrever uma dessas cartas que caiu a mancha de tinta sobre o vestido, que ela passou a exibir como um emblema do borrão indelével que caíra sobre sua alma.

Um dia encontraram-na morta de saudade, envergando o vestido de noiva, traje com que foi enterrada numa tarde de chuva e calor, em que o sol e as nuvens disputavam a primazia de assistir ao patético final.

Noiva casava em maio...

Como noiva, casta gazela abandonada no altar, ela passou a assombrar as noites de Abaeté do Tocantins, andando soturnamente pelas ruas da cidade. O vulto branco.

O vestido de noiva.

A mancha de tinta azul sobre a saia.

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