OS LIVROS MALDITOS

 

"(...) chegou a meus ouvidos um som baixo,

monótono, rápido como o de um relógio quando

abafado em algodão. Igualmente, eu bem sabia

que som era. Era a palpitação do coração do velho.

Ele me aumentava a fúria,

como o rufo de um tambor estimula o soldado."

(Edgar Allan Poe - o coração delator)


As chamas já alcançavam grande altura e Jandira continuava atirando os livros na fogueira. Era o começo de uma noite quente de agosto e muitos curiosos observavam aquela queima ritual que acontecia no quintal da antiga casa na rua do cemitério; as labaredas crepitando e pipocando fagulhas contra um céu arroxeado que lentamente convertia-se em negro profundo.

Crispim e Judá comentavam olhando de longe aquele ritual orgiástico.

- Ela deve ter enlouquecido depois da morte do marido... - disse Judá alisando o vasto bigode turco. - Sabe como é, ficou sem homem muito tempo e...

- Se bem que ela meteu chifre nele... - completou Crispim. - Professor de literatura metido a escritor, intelectual… Gostava mais de livro do que de gente; de mulher... Quando abriu o olho ela já andava com um açougueiro que sabia mais de artes carnais que de belas artes... - finalizou fazendo o clássico gesto de puxar um quadril feminino imaginário em direção ao membro viril.

- Daí ele saiu da casa e se mudou para morar sozinho com suas estantes cheias de livros, - lembrou Judá - até que aquela loirinha - disque antiga namoradinha - veio da capital e eles se mataram juntos dentro da casa...

- Uma tragédia... - suspirou Crispim.

- Quando viviam juntos - disse Judá pensativo - uma vez ele contou uma história estranha para a Jandira. Dizia o doutor Novaes que ela era mulher à beira da histeria, nervosa e trêmula. Por isso poderia ser facilmente influenciada, até mesmo manipulada...

- E ele disse... - estimulou Crispim.

- Que à noite, quando deitavam, os escritores saíam dos livros e vinham contar histórias pra ele… Escritor que morreu há séculos… Visagem… Coisa sinistra...

- Arre... - comentou Crispim com um tremor.

- Pois é... Não sei se era a imaginação de escritor dele, mas ele dizia que sentia até mesmo o colchão ceder quando eles sentavam na cama para contar as histórias...

- Jesus Cristo... - falou Crispim levando nervosamente as mãos aos bolsos.

- A infeliz começou a padecer de insônia. Ele disse certa vez na barbearia que várias vezes já tinha surpreendido a Jandira deitada de olhos abertos, olhando fixamente para a estante cheia de livros na parede. Passou um tempo, ela começou a se queixar dizendo que ouvia vozes à noite. De início era só um zumbido nos ouvidos, mas depois ela reconhecia nitidamente as vozes.

Enquanto os dois proseavam sobre a triste sina da infeliz, Jandira corria agitada diante da fogueira. Tinha os cabelos envolvidos por um lenço alvo e vestia uma túnica colorida que lhe chegava até os tornozelos. No pescoço, vários colares de contas multicores. O olhar fixo nas chamas sugeria uma possessa, uma endemoninhada, uma colérica. Sem dúvida, uma obcecada pelo afã de calar para sempre as vozes que, de início somente, nas noites silenciosas emanavam daqueles volumes e, depois, cada vez mais, apareciam nos momentos prosaicos do dia.

Ela as ouvia esporadicamente durante o banho, na missa, na cozinha... À noite, porém, narravam as histórias dos livros com atroz eloquência, sem deixá-la dormir. Falavam-lhe de mundos distantes, da conquista de Marte pelo homem, do horror em uma geleira além da Patagônia, das areias do Saara... Parecia uma maldição. Maldição que ela buscava exorcizar ali, naquela pira acesa à boca da noite que imolava a cultura do marido tragicamente falecido.

- Parece uma louca, não…? - murmurou Judá.

- O desespero... - filosofou Crispim. - As vozes que ela diz escutar a atormentam continuamente. A coitada já não consegue viver a vidinha... Olhe!

Um caixote de livros foi trazido em uma bicicleta e atirado aos pés da ensandecida. Ela rapidamente o abriu e agarrou algumas brochuras. Levantou bem alto os livros, iluminados pelas chamas alaranjadas e soltou um grito; urro infernal misto de dor, triunfo e desespero. Leu os autores em meio a imprecações.

- Rousseau, Maupassant, Bierce, Kipling! - urrou. - Ardam no fogo do inferno!

E atirou a mancheia de livros sobre as chamas, caindo de joelhos com as mãos na cabeça quando pipocaram brasas, fagulhas e chispas das labaredas. Ela levantou e gritou novamente enquanto sapecava o resto do conteúdo da caixa na fogueira. O grito foi se transformando em uma gargalhada insana, até que ela silenciou e deixou-se cair novamente de joelhos, curvada para frente, mãos cobrindo as têmporas, rosto no chão, soluçando baixinho, a fogueira crepitando.

- Eles tem que parar... Os escritores precisam se calar de vez... Precisam morrer junto com o falecido... - começou a murmurar. - No fogo eles vão calar... No fogo vou ter paz... Pelo fogo eu não vou mais ouvir as vozes...

Levantou o torso ainda ajoelhada e contemplou as chamas.

- Falem! - berrou para a fogueira. - Falem comigo! Se calaram? - continuou.

As chamas apenas crepitavam, no que ela julgou um escárnio.

Jandira levantou-se de um salto, ergueu o punho cerrado para a fogueira e gritou rilhando os dentes:

- Calaram! Ai, Jesus, eles se calaram... Eu posso mais. Eu sou mais forte do que vocês, ouviram! - e esmurrou novamente o ar quente e alaranjado que tremeluzia diante das labaredas. - Mais livros! - berrou - Mais livros pra queimar!

Disseram-lhe que não havia mais livros.

Toda a biblioteca do professor falecido já ardia na fogueira.

Ela deu um grito, o maior que deu naquele começo de noite, e caiu exausta. A pequena plateia que assistia aquilo acudiu. Jandira foi carregada para longe das chamas e depositada em uma rede. Ali deram-lhe água, massagearam seus pulsos com cânfora; deram-lhe depois, colherada a colherada, um mingau fino de farinha de tapioca com açaí. Ela foi retornando do furor histérico.

Olhou à volta para os rostos conhecidos que a socorriam. Sorriu entre lágrimas. Ali estavam a madrinha Sizina com uma garrafa de água benta no bolso do vestido caseiro, seu Benedito do centro espírita, dona Jovina carregando o papeiro com o resto do mingau; um círculo de vários rostos brotando da penumbra a olharem fixamente para ela.

Embora mudos, quase era possível ouvir-lhes perguntando das vozes com os olhos arregalados. As vozes.

As vozes? Jandira quase esquecera delas. Sorriu a princípio. As vozes?

Oh, Jesus, elas ainda estavam ali!

Jandira empalideceu, crispou as mãos na tigela e sentou-se sobressaltada na rede. Pediu que calassem o tagarelar dos curiosos para que ela ouvisse melhor, mas ninguém falava. Eram as vozes!

- Jesus! - berrou atirando longe o resto de mingau. - As vozes!

A turba recuou apavorada. Tinham medo de doido, medo de possuído, medo de endiabrado, medo de Satanás, medo de espírito, medo de cemitério e de casa assobrada. Temiam aparições e visagens. Saíram correndo de perto de Jandira.

Ela começou a gargalhar. A gargalhada dos insanos.

- Ainda ouço as vozes! - berrou num esgar e levantou-se da rede. - Só tem um jeito... - murmurou com o olhar fixo na fogueira que ardia diante dela.

Num grito lancinante que lembrava o rasga-mortalha agourando as madrugadas ela correu para o fogo e atirou-se no meio das chamas, levantando uma última e mais violenta explosão de faíscas.


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