A Igreja

Por que Deus, o criador de tudo o que existe no Universo, ao dar existência ao ser humano, ao tirá-lo do Nada, destinou-o a defecar? Teria Deus, ao atribuir-nos essa irrevogável função de transformar em merda tudo o que comemos, revelado sua incapacidade de criar um ser perfeito? Ou sua vontade era essa, fazer-nos assim toscos? Ergo, a merda?

(Rubem Fonseca, no conto Copromancia)

Tinha chegado uma menina nova no Gigi. Menina cearense fugindo da seca. Coisa fina, quase mocinha, ainda durinha e justa. Minha patroa, coitada, tinha vergonha de fazer aquelas coisas que as raparigas fazem. Também! Criada da missa pro colégio, da sala pra cozinha, malmente tomando um grapete domingo depois da missa, tinha que dar nisso mesmo. Mulher boa tem que fumar, beber com a gente e fazer cabelo, barba e bigode...

Quem me falou da menina foi o Gimico. Ele ia sair pra viagem do Amazonas e não podia ir comigo, mas me recomendou pro Gigi. Ele disse assim: Olha Mário, vai lá que a piquenazinha é paid’égua. Bom, aí eu resolvi convidar o Didi pra ir comigo, assim a gente bebia umas junto e depois tinha companhia pra voltar pra casa.

O Didi era um sujeito peludo e atarracado, que andava gingando e parecia ter um braço ainda agarrando o galho de onde a gente tinha descido na pré-história. Eu me lembrava dele ouvindo a professora Esmerina falar dos homens das cavernas. Essa aula eu nunca me esqueci porque peguei uma surra do papai quando falei na hora do almoço que a gente era descendente dos homens macaco. O Didi, pra mim, era alguém que estava perto deles. Muito perto. Talvez fosse mesmo um deles. Disque ele tinha curso de mecânico. Relojoeiro ele nunca ia ser, com aquelas manoplas. Parecia um homem da caverna debruçado em cima de um carburador e uma panela cheia de gasolina, aquele olhar obtuso, cérebro mirabolante, beiço grosso, macacão azul sujo de graxa com a pança de fora, o umbigo espreitando como um olho por onde faltava um botão da roupa, troglodita tecnológico saltando por cima do tempo e do espaço. Mas bom. 

Quando eu cheguei na oficina do Didi, adivinhe o que tava lá? Sim senhor, a moto do padre chumbinho, aquela Jawa de logo depois da guerra. O padre chumbinho era um sujeito engraçado. Tinha um ciúme daquela moto...! Não deixava ninguém andar nela, ninguém pegar nem chegar perto. Confiava no Didi pra fazer a manutenção na moto. Era o Didi quem trocava o óleo, a corrente, lubrificava os eixos, consertava cabo arrebentado, pintura, trocava lâmpada... Uma vez ele foi em Belém mandar consertar a sela, aquelas selas de couro, paresque de bicicleta, que tinha quebrado uma mola e ninguém dava jeito em Abaeté.

Bom, mas tinha chegado a menina nova no Gigi e eu convidei o Didi pra ir lá dar uma olhada. A gente podia ir na moto do padre, mas ele ficou com medo. Foi com muita conversa que eu convenci o Didi a enrolar o padre e segurar a entrega da moto pro outro dia. Bom, acertado tudo, nos fomo pro Gigi.

Fomos alegres, rindo, espocando na moto barulhenta, mas dando uma volta lá pelo São Lourenço pra despistar do padre. Se ele ouvisse a moto passar perto da igreja aí a gente tava na pior. Era uma boa carreira até o fim da Lauro Sodré...

Quando nós chegamos no Gigi, qual foi a surpresa. Tudo no escuro. Um breu! Eu falei pro Didi que aquilo era sacanagem, que a gente demorava pra ir, e quando ia acontecia uma coisa daquelas. Tudo no breu. Disque foi circuito na rua e queimou fiação de tudo quanto foi casa naquele pedaço, meio sabrecando um barraco quase confronte o Gigi, de onde salvaram tudo, até uma velha asmática que saiu carregada dentro de uma rede. Sem energia não tinha luz nem som. Sem isso nenhuma puta saía do quarto, a cerveja esquentava e era melhor ficar dormindo em casa do que aventurar qualquer coisa ali. 

Uma puta velha ainda se engraçou comigo, lançando um versinho. Ora, eu lá que sou de cair em galanteio de puta relaxada...!

Me encabulou o Silvinho por ali. Justo aquele que uma putinha tinha rasgado o rego num acesso de tara. Ele tava ali como quem não quer nada, o zolhão brilhando no escuro, olhando, olhando... Na certa tava de olho na cearensezinha, querendo deitar com ela. Tem gente que procura... O caso do rego rasgado foi assim.

O Silvinho era um preto graúdo, famoso, conhecido como avantajado. Diziam que ele tinha três pernas. Uma noite ele chegou no Gigi e pediu uma cerveja. No que ele se senta, chegou uma piquenazinha miúda, nova ali, e convidou ele pra sacrificar pra Vênus com ela. Quando o pessoal viu aquilo, se apavorou. Os que conheciam o Silvinho acharam que ele podia rasgar a piquenazinha. Ele terminou a cerveja e os dois foram pro quarto. Todo mundo correu pra perto dos quartos, baixaram a música e mandaram logo avisar uma enfermeira que morava ali perto, pra ela trazer anestesia e material pra costurar ferida. Gelo tinha muito no bar do Gigi.

Rapaz, deram um grito lá pra dentro aí nós dissemos - Pronto, rasgou a piquena! O que!? Quando arrombaram a porta e a gente invadiu o quarto o Silvinho tava se esvaindo em sangue. A diaba tinha atracado as bochechas da bunda dele e dado um sacalhão. Fez tanta força que arrebentou as pregas dele. Levou seis pontos. Dava pena ver um homem daquele tamanho, gente boa, arreganhado se escondendo no lençol, envergonhado tentando ocultar o membro que pendia flácido como um bestial muçum envolvido pelo pano ensanguentado, e a enfermeira costurando as pregas dele com todo mundo olhando. Ele mandava sair com uma sacudida de braço, mas ninguém se mexia; todo mundo petrificado pela cena. Pelo jeito tinha rasgado as setenta e duas pregas do cu, aquelas da vergonha, companheiras eternas e inseparáveis da merda... Disse a zinha, despudorada, que foi acidente de trabalho...

Bom, a gente ainda ficou por ali, deu dez horas, deu onze, chegou perto da meia-noite, nada da luz, a gente resolveu ir embora. A menina tava lá, dormindo, não ia fugir. No outro dia a gente voltava.

Aí a gente saiu pela Lauro Sodré direto, correndo em cima da moto. Fomos indo tatá, tatá, tatá, tatá, quando a gente vai chegando lá pela casa do velho Capivara, pei! A moto prega. Olha o nosso enrasca!

Eu falei pro Didi que diabo de mecânico ele era pra fazer uma coisa daquelas. Moto não pode pregar, ainda mais a moto do padre chumbinho, que saía pra caçar e viajava bem longe, indo no ramal de Beja, no Abaetezinho, na Colônia...

Bom, mas como a gente já tava na fria, resolvemos empurrar a moto pela rua. Era pesada a praga. A Jawa era leve correndo, com o motor rodando e a sela de couro gemendo e pulado em cima da mola. Mas no prego, era um fardo pra nós. Viemos devagar, empurrando, e agora não carecia mais a gente passar longe da igreja. O padre já tava deitado, e mesmo que não tivesse ainda dormido, não ia ouvir nada. A gente vinha contando história de visagem, de perseguição na rua, de surra, do porcão que persegue a gente, da matinta, da noiva de branco, que nem sentiu a rua. Quando olhamos, a gente já tava quase na praça da Matriz.

Fomos chegando, chegando, ninguém na rua, a praça no escuro, só uma lâmpada em cada poste, umas brasinhas que não alumiavam nada. O Gidonda tinha fechado o bar naquela horinha e a gente ainda viu, lá do canto da caixa d’água, quando ele atravessou do bar pra casa dele, apagou a luz do pátio e trancou a porta. Agora sim, ninguém mesmo na rua. 

Nós paramos debaixo dum jambeiro pra descansar um pouco. Eu me encostei na moto e o Didi se sentou no chão, puxando um fôlego. Dali de onde a gente tava dava pra ver a igreja, o coreto, as árvores, um pedaço da rua do outro lado, mas dava malmente, porque tava muito escuro, sem lua, e as lâmpadas do poste não davam conta de tanto escuro. Pelo meio das trevas a gente ouvia os morcegos vampiros do Marajó passando pelo arvoredo procurando sangue pra beber. Até hoje me arrepia quando eu escuto aqueles estalos que eles fazem no escuro. Lembrança daquela noite.

Foi só firmando mais a vista que a gente viu que a igreja tava toda aberta, mas no escuro. Nessa hora o relógio bateu meia-noite. Meia-noite em ponto, as doze batidas no sino. Eu tive uma cuíra, um troço feio que me gelou a espinha. Bati no Didi, mas ele tava olhando uma coisa, paresque uma coisa que assombrava ele. Eu olhei no mesmo rumo e vi a procissão vindo no escuro.

Nenhuma vela, nem reza, nem santo, nada. Um bando de gente de branco vindo pra igreja no escuro sem dar um pio. Quando eu fico com medo eu me descontrolo e faço a minha precisão nas calças. Não foi diferente naquela noite. Seu Contente diz que é dos nervos, que tem cura, até me receitou um xarope, mas eu ainda não sei me controlar. Imagine… Eu acho que cagar já é um defeito de fábrica do ser humano. Um filho de Deus devia ser libertado disso. Não saber controlar a merda, então, é uma infelicidade... Me esvaí ali na hora, mas o medo não me deixou nem sentir cheiro, quanto mais nojo. Foi até bom, porque aquela coisa pegajosa me lubrificou o rego como graxa e quando eu abri na carreira gritando as bochechas da bunda escorregavam uma na outra, facilitando a pernada.

Não sei o que o Didi fez, mas desse dia em diante ele não disse mais coisa com coisa. Ainda me alembro dele ali no chão, mas paresque ele tava mundiado e nem se mexia. Não teve como correr e eu, como abri de lá na carreira, me salvei. Mas a procissão dos mortos é coisa feia mesmo. Toda meia-noite ela sai do cemitério e vai pra igreja. Lá eles rezam, cantam e depois voltam pro cemitério. Depois que vão embora a praça fica vazia e em silêncio até de manhã, como se nada tivesse acontecido mas só eu sei...

Eu me caguei; caguei em minhas calças como o mais descontrolado dos seres, mas graças à merda eu me salvei. Alguns, aqueles que não tem esse problema, sofrem coisa pior. Dizem que quem vê aquilo fica doidinho... 

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