Visões na noite

Meu amigo, eu vou lhe contar uma coisa. Se aquele cartaz tivesse caído na estrada depois do acontecido, eu ia passar o resto da vida jurando que tinha visto visagem naquela noite. Faz muito tempo que aconteceu comigo, logo quando abriram a estrada e o caminho para a Colônia deixou de ser só pelo igarapé, que aliás secava no verão e a gente tinha que ir pra lá andando pelo meio da mata. Mas bom.

A mata ainda metia medo, mesmo com a estrada e com carro andando nela. Quando escurecia era um breu só. Era costume a gente mandar instalar um holofote de barco em cima do carro, desses de mil e quinhentas velas, que a gente usava pra alumiar a estrada. Aqui, motorista era parece um comandante de regatão no Tocantins, que de vez em quando acendia o holofote pra dar uma olhada, porque só o farol do carro alumiava pouco. No breu da mata a gente via de tudo. Labisonho, Matinta, olho vermelho brilhando no meio da capoeira, Curupira que levava criança que não era batizada; e coisa que a gente não via, mas só sentia. Era arrepio, desorientação; até um vizinho meu ficou doido uma vez. Hoje nem capoeira tem, já jogaram tudo embaixo, mas naquele tempo a gente achava coisa de outro mundo atrás de cada sapopema. E ainda tinha coisa deste mundo: formiga que devorava gente, onça, cobra de tudo que é jeito... Mas bom.

Eu tinha ido levar um compadre meu na Colônia. Era muito amigo meu, aquele um que tinha ficado rico aviando pra um engenho de cachaça bem na boca do Tucumanduba, um rio bonito... Nós tinha trabalhado de parceiro, mas eu tinha acabado o meu dinheiro na farra e ele tinha guardado. Disque teve a sorte de ter uma mulher que gostava de juntar dinheiro. A minha, antes de ir embora pra Belém com um sujeito aí, queria tá todo domingo no cabaré dançando. Era dama na Venuta! Deu no que deu: fiquei remediado! Mas bom.

Aí quando cheguei na Colônia com o meu compadre foi uma alegria. Ele tinha vindo de Belém cheio de coisa. Tinha chegado no navio da linha do Tocantins, que tinha passado cedo nessa noite. Saiu de Belém seis horas e umas nove, nove e meia, passou em Abaeté. A maré ajudou naquela noite. Mas bom.

Quando chegamos lá foram matar duas galinhas, fritaram uma dúzia de ovo de pata pra fazer uma farofa e já tinha um leitão assando. Tomamos logo um licor de jenipapo que a dona Preciosa, mulher dele, sempre tinha pra servir pras visitas. Rapaz, nós comemos e bebemos que foi uma beleza. Proseamos até perto da uma da manhã e eu resolvi voltar pra cidade. Ainda me convidaram pra dormir por lá mesmo mas eu queria tá de madrugada na ponte grande porque vinha passar um outro barco do Tocantins de volta pra Belém e um vizinho tinha ouvido no rádio que uma comitiva de um candidato a deputado, apoiado pelo pessoal do Barata, vinha nesse barco e aí podia ser que eu ganhasse alguma coisa. Não fosse uma dentadura, que a minha já tá ruim, podia ser até uma corrida. Meu carro era bom pra viagem pra longe. Era uma Rural seis cilindros. Tinha um salão atrás que levava tudo. Onde ficava o motor só faltava ser assoalhado de acapu e pau amarelo pra ser igual uma sala de máquina de barco. Grande, espaço bom pra trabalhar. Era uma beleza aquele carro. E corria muito. Atrás tinha um vidro enorme que dava pra ver tudo. Mo meu eu tinha pendurado uma redinha de dormir e tinha ficado bonito. Com o holofote em cima ficou igual um gaiola do Amazonas, com uma rede armada... Mas bom.

Era tempo de eleição e a política tava fervendo. Já tinham até se atracado na ponte grande da cidade quando uma dessas comitivas vinha chegando. O pessoal do Barata não suportava foguete de assobio, porque o velho odiava. Como era tudo puxa-saco aí eles também se aborreciam. Pois a comitiva vinha desembarcando e o pessoal do outro lado começou a soltar foguete de assobio um atrás do outro. Aí o pau comeu. Foi um porradal sem fim. Caía gente no rio, senhoras desmaiavam, gente corria... Foi medonho. Nessa hora, da política, os donos de engenho cobravam a gentileza que faziam o ano inteiro, de facilitar o aviamento, dar medicação, mandar estudar... Era tudo uma exploração só porque no barracão do aviamento o único que não ganhava nada era o trabalhador, mas parecia que o dono do engenho era um pai. Aí o papai cobrava o voto pro pessoal dele. E ai de quem falhasse! Mas bom.

Enquanto a gente comia, bebia e proseava alguém foi e colocou no vidro grande da Rural, lá atrás, o cartaz de um político no lado do Barata, os dois abraçados, o velho filho da puta mandando votar no ladrão da corriola dele apontando o dedo. No escuro, eu não vi nada. Embarquei na Rural e saí pegando a estrada de volta pra Abaeté. Era uma beleza aquele carro correndo naquela estrada fria. Abri o morcego pra entrar aquele vento frio da madrugada. Era tempo da florada do Cumaru e aquele perfume encheu o meu carro. Procurei não pensar em nada na estrada. Nem visagem, nem coisa deste mundo. Tinha uma cartucheira e um terçado, um rabo de galo 128, que eu levava comigo debaixo do banco, junto de uma caixa de ferramenta que tinha lá. Vou lhe dizer uma coisa que é segredo e eu não quero que os padres saibam. Tinha também uma oração da Cabra Preta dentro de uma Bíblia que eu guardava no porta-luvas da Rural. Eu tinha copiado de um livro do Caio Andrade, aquele que gostava de ler muito, e eu já tinha até decorado e rezava todo meio-dia, de boca fechada. Era minha proteção. Mas eu ainda levava a oração no carro comigo. Dizem que ela, dentro de uma Bíblia, afastou o Capeta de uma casa uma vez em Abaeté. Um entendido levantou o livro e gritou “Vade Retro Satanás!” bem alto. Mas bom.

Rapaz, uma hora veio um carro por trás de mim e me alumiou com o farol dele. Quando eu olhei pelo retrovisor pro vidro de trás o meu sangue gelou. Parecia que tinha duas pessoas, duas visagens sentadas no banco de trás! Uma vez tinham me contado de uma mulher que tinha sido queimada pelo marido perto de um igarapé na beira da estrada e ela às vezes aparecia dentro dos carros que passavam perto do lugar. Eu fiquei com aquilo na cabeça. Naquela noite parecia que ela tinha aparecido no meu carro e ainda tinha trazido outro com ela. Mas bom.

Eu fiquei duro no volante olhando aquilo. Pensei em tudo. Em me jogar do carro, em entrar na capoeira com tudo, em largar o volante e fechar o olho... No desespero, comecei a rezar a oração. Pra minha sorte eu ia passando na frente da casa de outro conhecido meu e tinha uma lamparina acesa lá. Eu dei uma guinada e quase viro a Rural, mas entrei na voada lá e quando eu parei abri na carreira de dentro do carro, gritando o nome do meu conhecido. Eles vieram lá de dentro já armados, porque tava sumindo criação deles, e eu me joguei nos braços de um. Me disseram depois que eu tava branco igual uma cera e não falava coisa com coisa. Me deram cachaça. Quando me acalmei e contei o que tinha acontecido eles foram olhar e descobriram o cartaz. Deram muita risada do meu medo e eu fiquei com vergonha. Me encaranaram oferecendo o cartaz pra eu pendurar na porta de casa. Eu rasguei foi tudo o praga. E cagava em cima se pudesse.

Se esse cartaz cai na estrada...

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