CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 14

 Brinquedos


A imagem retrata um momento, na primeira metade dos anos 90, em Abaeté, quando o brinquedo de miriti vivia seu ocaso.

Sufocado pelos importados, bailava ao vento, pendurado na armação feita com o próprio miriti, em estado bruto, ao som da conhecida música – uma crítica em versos! - que falava de nossa inexorável vocação de colônia. Lembra?

Belém, Pará, Brasil, do Mosaico de Ravena.

Pois bem, a rendição ao “melhor” que vem de fora estava quase consumada...

Artesãos esquecidos ainda se dedicavam ao ofício, ao qual já poucos dirigiam alguma atenção.

Fiz essa imagem quando voltava para casa no dia de um Círio de Conceição e passava diante do garoto. Imediatamente vi o que a câmara poderia congelar em filme e não tive dúvida em fazê-lo; o registro de um momento, daquele momento que era, talvez, um dos últimos dias do brinquedo de miriti. O que se pode constatar é que desde esse tempo, algumas coisas mudaram.

Os artesãos se organizaram em associações, grupos, redes de apoio e de valorização. Isso se deu na perspectiva de certa assessoria empresarial que eles passaram a receber de instituições devotadas a esse fim.E deu certo. Nota-se isso pela renovação que se sucedeu: novas gerações de artesãos foram aprendendo o ofício com aquelas que pareciam já condenadas ao desaparecimento. A atividade (ainda não exatamente uma profissão, mas já com esse status social...) ganhou respeitabilidade e fertilidade graças a essa nova condição, de algo que poderia responder aos anseios de sucesso e de reconhecimento dos mais novos; o de exercer uma profissão que ombreava com as artes plásticas mais tradicionais e abria a oportunidade para experimentações estéticas e infinitas intervenções criativas. Isso, aliás, aconteceu também por obra da instituição empresarial que assessorou os artesãos nessa transição.

Artistas plásticos vieram da capital e realizaram cursos e oficinas, através dos quais novas técnicas e novos materiais foram apresentados aos artesãos, abrindo novas perspectivas. Isso, claro, subverteu os valores tradicionais firmemente assentados no uso restrito da bucha do miriti e de um punhado de outros instrumentos e materiais. Estes caracterizariam o brinquedo de miriti em sua fase antiga, que chamaremos de "tradicional".

Nessa primeira fase, as peças eram esculpidas com uma faca bem afiada, fixadas com palitos feitos a partir da tala do miriti e coloridos com o uso de uma tinta artesanal que era elaborada com goma de tapioca à qual se adicionava, inicialmente, um corante feito com papel de seda ou crepom dissolvido em água e, posteriormente, com anilina industrializada. Isso produzia um tipo de brinquedo bem rústico, onde era possível ver-se a textura e aspereza do material original. Para a pintura, muitas vezes eram utilizados pincéis feitos com um tipo de capim que, quando amassado, produzia cerdas finas. Porém, mesmo assim, as pinturas revelavam toda uma espontaneidade plástica igualmente rústica. Pois bem. Nesta nova fase tudo mudaria.

O novo brinquedo de miriti começou a recobrir a matéria original com massa acrílica, que após o devido tratamento tornou o produto final completamente distinto do primitivo. As cores, agora vindas de pigmentos industrializados, tornaram-se mais vivas, sobre a base imaculadamente branca, lisa e brilhante. Novas e apuradas ferramentas, técnicas e materiais foram introduzidas no processo produtivo.

Além da bucha e da tala do miriti, massa e tintas acrílicas, estiletes, sementes de vários vegetais da região, tururi, tecidos e arames passaram a ser usados com total liberdade pelos artesãos. Isso, claro, não aconteceu sem polêmica.

Muitos reagiram àquilo que chamaram de "subversão de uma prática original", considerando que o brinquedo deveria ser "preservado" em sua forma original. Essa é uma questão que nos remete à cultura e àquilo que se dá quando duas ou mais manifestações culturais interagem, ao se encontrarem.

Ora, a cultura é dinâmica. "Culturas" surgem e desaparecem, modificando-se com o tempo e com a interação com outras formas de cultura e com as técnicas. Por exemplo, quando o samba interagiu com o jazz americano surgiu um tipo maravilhoso de música, com arranjos sofisticados e agradáveis, que ganhou um novo nome: Bossa Nova. Que, lógico, alguns críticos detestam e até mesmo dizem que não existe; que aquilo é samba, simplesmente. Nosso brinquedo em sua forma tradicional deve ter sua estética, suas técnicas de produção, toda a sua "cultura" devidamente documentada e, nisto, ser "preservado". Mas não creio que deva ser mantido imóvel, estático, imune a novas experiências e interações.

Pois bem. Esse novo formato do brinquedo de miriti surgiu em um momento em que o movimento ambientalista ganhou força, quando a preservação das florestas tornou-se indispensável para a sobrevivência da humanidade e para isso foi importante a valorização e sustentabilidade dos chamados "povos da floresta", aqueles que nelas vivem sem destruí-la. São coletores de oleaginosas, produtores de essências e óleos, praticantes de manejo florestal sustentável e... artesãos da floresta! Dentro dessa nova era concebida principalmente nos países desenvolvidos, o brinquedo de miriti saiu da mata para ganhar o mundo.

Amparado por essa nova estética, por um marketing inteligente, pelo discurso ambientalista, o brinquedo caiu nas graças do mundo moderno e passou a ter destaque junto a designers de interiores, arquitetos, artistas, acadêmicos e intelectuais, e a toda aquela gente "cool" e "descolada" que levanta a mesma bandeira progressista que ficou guardada desde o fim da guerra-fria.

Isso foi bom ou ruim para o brinquedo de miriti?

Responder de forma afirmativa ou negativa, nesse caso, depende de como se vê o mundo. Para mim isso foi bom, pois valorizou os produtores, deu a eles uma perspectiva otimista diante da vida e da realização pessoal. Criou novas gerações de artesãos e deu-lhes um sentido novo à vida. Disseminou entre eles a confiança no pertencimento a algo maior que um burgo espremido entre uma floresta e um rio, ambos gigantescos e intimidadores. Deu-lhes um ganha-pão digno e fértil. Sobretudo, fez com que o brinquedo de miriti deixasse de ser simplesmente um...brinquedo. Ele passou a ter a aura benjaminiana de obra de arte em seu período anterior à reprodutibilidade técnica, mesmo produzido em série. Um lote de barquinhos, cobrinhas ou soca-socas jamais reunirá peças idênticas. Às vezes é o humor do artesão, outras é um braço que escorrega na mesa na hora de pincelar; pode ser  uma visita inesperada na oficina... O brinquedo tornou-se obra de arte cult...

Claro, há novas questões.

Fala-se hoje, por exemplo, que o aumento na produção de açaí (também decorrente de todo um contexto cultural, aquele da geração saúde, geração fitness, amparado pelo marketing das academias, da nutrição e da dietética) está modificando profundamente o ambiente de várzea dos miritizeiros, ameaçando estes de extinção. Diz-se também que a coleta predatória de matéria-prima está igualmente colocando pressão ambiental sobre a árvore, obviamente indispensável para a produção do brinquedo. Que pode existir sem massa acrílica ou fios de nylon, mas desaparece sem a bucha de miriti. Causa calafrios um "brinquedo de miriti" elaborado com restos de madeira de pinho obtida de caixotes descartados em cinzentos lixões no entorno de uma fábrica de alumínio...

Novas questões, novos desafios; como tem sido sempre, como sempre será...

E assim é a cultura.

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