O Livro

 

(Do livro Histórias de Visagens, vol. 2)

Bibil chegou meio desconfiado naquela tarde. Esperou que o velho Soares se afastasse um pouco do balcão e se achegou no Neca.

- Neca - disse baixinho, coçando a cabeça e falando quase pra dentro - o livro chegou...

- Não tenho ainda o dinheiro... - sussurrou o Neca.

- Deixa comigo. Vou ver se o seu Mendonça me fia essa...

Os dois se afastaram quando o velho Soares retornou para o balcão, comentando que a maré ia dar muito peixe na semana santa. Já o camarão, iria desparecer nos igapós da maré cheia, até a próxima baixa...

Fazia um calor infernal naquele comércio, ali na beira, no canto do Raimundo Soares, diante da ponte grande e da loja Raposa. Um barco passava, espocando fumaça preta por uma chaminé torta. Era meio da tarde, uma terça feira daquelas em que dá uma cuíra, uma vontade enorme de ir embora de Abaeté pra ver se a gente conhece coisa nova e arranja um trabalho melhor. Os que resistem, sem dúvida prosperam. Quem não agüenta a dureza daquele niilismo tropical entrega-se à cachaça. 

Assim foi com o Caio Andrade, o doutor Novaes, intelectuais que se reconheciam como tal e custaram a acreditar na verdade, de que estariam condenados ao desespero se ficassem em Abaeté. E ficaram. E, a despeito da enorme biblioteca do Caio - intelectual famoso pelas polêmicas no Bar do Nicola, onde aqueles espíritos superiores se reuniam nos fins de tarde em torno do gim e da Cuba Libre - ou das passeatas organizadas pelo doutor Novaes para festejar a queda da bastilha, irremediavelmente sucumbiram. O doutor Novaes chegou a ter um programa no Copacabana, todo final de tarde, onde falava de literatura e ocultismo. Tinha até boa audiência, as pessoas paravam debaixo das caixas de som na feira e ficavam escutando. Quando ele divulgou uma conjuração a Belzebu na hora da Ave-Maria, os frades protestaram e o velho Bandute achou por bem tirar do ar o promissor radialista cuja carreira, diziam, chegaria na PRC-5. 

Cheiro de peixe, charque e querosene, mantas de capivara salgada e jacaré alemão. Nada de um Reve d'Or ou Artimatic. Apenas o sal, tentando esterilizar uma carne condenada à putrefação. Como não sonhar com uma outra vida? Como não desejar prosperidade, fortuna, galanteio e cheiro bom? O livro prometia tudo isso?

Quase sete de uma noite fria e ventosa, o Copacabana tinha saído do ar, lá vinha o Bibil com o livro de São Cipriano. O original da capa preta, comprado pelo reembolso postal. Seu Mendonça, agente do Correio em Abaeté fiara sim, confiando no Bibil, aprendiz de comércio, funcionário do seu Soares, rapaz que só andava bem vestido, cabelo com brilhantina ou glostora, mil cruzeiros de menta junto com o pente no bolso da calça.

Ele e o Neca subiram pro forro do comércio e acenderam uma vela. Bibil tirou a camisa, enxugou o suor do peito, abriu o pacote e acariciou a capa dura revestida de couro preto com letras douradas, de onde uma carranca de um bode em relevo os encarava. Seus olhos brilharam.

- Bibil... - gemeu o Neca, amedrontado pela sinistra figura. - Tu tens certeza que a gente deve ler esse livro?

- Mas por que antão?

- Paresque faz mal pra gente...

- Ara quando já!?

- O Pelé leu de trás pra frente e ficou doidinho...

- Tu tá com medo, Neca? Bom, se tu tá com medo é só me dizer: Bibil, eu estou fora!, que eu fico só. Mas te alembra do que a gente pode ganhar...

Neca pensou, pensou, pesou as dificuldades da vida e a promessa de riqueza. Tinha lido a Cruz de Caravaca e nada havia mudado. Talvez porque não fosse um livro tão poderoso. Mesmo com medo, acabou topando entrar na empreitada.

Os dois começaram a ler. Primeiro devagar, baixinho, depois mais depressa, com sinceridade, até quase o estupor, o frenesi. Bibil suava muito, agitado. Neca sentia a cabeça rodar, mas eles não paravam.

De repente, a vela se apagou.

- Bibil, é ele, o capeta! - gritou Neca apavorado.

Bibil pediu calma ao colega e procurou os fósforos no bolso. Acendeu novamente a vela e pesquisou melhor o lugar. Uma coruja os olhava curiosa. Bibil sentiu um arrepio quando ouviu o grito agourento da ave. Neca começou a berrar de novo, dizendo que era o capeta, só podia ser o capeta. Começou a chorar com medo, mas recebeu generoso gole de cachaça e  acalmou-se.

Bibil descobriu que  uma corrente de vento que vazava por entre umas telhas mal ajustadas apagara a vela. Nada do outro mundo. Com a camisa calafetou o telhado e recomeçou a leitura do livro. Desta feita a vela se aguentou bem. Terminado a tarefa, os dois relaxaram, ficaram um tempo fumando, proseando, tomaram um gole e depois desceram para o comércio. Bibil deixou o livro escondido no forro pendurado num ripão, dentro de uma sarrapilheira que o seu Soares usava pra guardar a Romina, uma jibóia que comia os ratos e salvava a mercadoria do pior.

Os dois saíram e foram pegar um vento na ponte grande. Saíram com uma estranha sensação, de estarem sendo seguidos. Bibil de vez em quando se virava procurando algo na escuridão e o Neca sentia um bafo quente e vaporoso no tutiço, sem que houvesse viva alma perto deles.

Bibil começou a reclamar de um aperto no peito, uma dor de cabeça... Neca estava meio tonto.

Os dois pararam pra tomar um café no Birilinho, aquele que vendia café em metro perto da farmácia do seu Contente.

Beberam em silêncio, suando frio, cheios de cuíra, pagaram e foram embora conversando, o Neca empurrando uma bicicleta velha e ranzinza que usava como transporte.

- Bibil, será que a gente fez o certo...?

- Claro que fizemos! Espera até ver o que vai acontecer. Tá certo, tu diz que o Pelé leu e ficou doido, mas o Manduquinha lá no Tucumanduba também leu e o engenho dele tá por cima. Ele tá podre de rico.

- Mas eu tô com medo, paresque tão atrás de nós...

- Conversa! Isso é o teu medo que tá fazendo tudo. Medo faz coisa! Te alembra da promessa da gente ficar rico...

- Mas...

- Num tem mas nem menos. Quem lê o livro de são Cipriano fica ou doido ou podre de rico. Eu aposto na segunda. Neca, nós vamos ficar podre de rico! Meu irmão, te alembra da tua vida, atrás do balcão, vendendo e comprando, todo dia a mesma coisa, o pixé... Égua, meu irmão! Eu estou fora!

- Bibil, eu estou com medo...

- Porra, meu!

Como estava chegando em casa, Bibil se calou. Neca montou e seguiu pela rua escura. Ele ficou na porta olhando o amigo que sumia na noite pedalando a bicicleta, os rangidos da máquina mal azeitada ainda se fazendo ouvir mesmo quando ele já havia sumido no escuridão.

Bibil compadeceu-se do Neca. Bom trabalhador, rapaz inteligente, fizera até a quarta série primária no Basílio e não tinha dinheiro pra ir pra Belém estudar. Como muitos. O Expedito, o Manduquinha, a Teresa da farmácia, ele mesmo; todos condenados a ficarem em Abaeté trabalhando e padecendo. 

Neca teria uma jornada longa até chegar em casa, lá no ramal da Angélica. Ele precisava passar diante do campo da aviação e da rua do arame, onde fazia visagem desde que um avião tinha caído e não deu pra saber o que era carne de gente e o que era carne de boi. Acharam miolo até na rama de uma bacabeira 

Bibil entrou, recebeu a bença do pai e foi tomar um banho. Depois jantou e resolveu ir um instantinho na retrete. No caminho para a sentina, um breu no fundo do quintal, não reparou que uma tábua da escadinha que descia da casa estava quebrada, o que lhe custou um tombo no escuro quando uma lufada de vento apagou a lamparina. Foi só o começo do tormento. As provações se seguiram.

No escuro dentro da casinha secreta, o primeiro susto veio quando Bibil teve a horrível sensação de que não estava sozinho. Algo se movia em um canto, algo reptiliano e primitivo, arrastando-se e resfolegando. Bibil sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Tentava desesperadamente riscar um fósforo, mas os palitos estalavam e quebravam um após o outro. Quando finalmente conseguiu luz, percebeu aliviado um camaleão em busca de comida, um enorme lacertílio fazendo quase o mesmo que ele, ao dar murro todo santo dia lá no comércio pra ganhar o sustento, enfrentando tardes morrinhentas e manhãs suarentas em busca do baco-baco. Ainda mais agora, que ele havia pedido entrada na casa da namorada e não ia demorar pra casar...

Aliviado, do intestino e do susto, deixou a casinha e procurou a rede. Armou a baladeira na sala, estava com calor, malacafento, ouvia um rádio longe tocando um bolero, o pigarro do pai, uma rede rangendo na escápula mal azeitada, pequenos ruídos da noite que compunham uma hipnótica sinfonia. Mas onde que dormiu!

Vultos, tapas suaves, risos, hálitos quentes, dormência do braço ou das pernas, sensação de queda sem fim, isso durou a noite inteira.

Quando amanheceu, Bibil estava um zumbi. Os olhos esgazeados, as mãos trêmulas, um suor pegajoso, um barulho nos ouvidos e aquela sensação de estar sendo seguido. Não pregara os olhos, vendo coisas no escuro. Não adiantou caribé, gemada, nem uma benzição. Foi trabalhar sim, porque a obrigação falava mais alto, mas quase não conseguia falar. Pior foi quando viu o Neca.

Olho roxo, braço na tipóia, raladuras, o Neca parecia chegado da guerra.

- Mas Neca, rapá!

- Hum!

- O que foi isso, meu irmão!?

- Peguei uma surra...

- De quem, rapá?

- De visagem, lá na rua do arame...

Esperaram até quando o seu Soares saiu pra jogar uma mão de baralho, aí puderam conversar mais francamente.

- Caí da bicicleta - disse o Neca. - Se atravessou um porcão na minha frente e ela não tem freio. Quando eu tava me alevantando, veio aquela cipoada por trás no meio do cangote. Que eu quis correr, uma rasteira. Aí me cobriram.

Neca parou de falar, tomou fôlego, gemeu, cuspiu sangue, acendeu um cigarro e tomou um gole de cachaça.

- Conhaque num era melhor...? - disse o Bibil.

Neca gemeu de novo, virou o copo e puxou uma tragada funda, estalando todo. Parou um pouco pensando.

- Bibil, - disse finalmente - tu passaste bem essa noite?

Bibil contou sua noite de horror.

- Quase em morro... - finalizou, depois do triste relatório.

Neca ficou calado meditando. Quando falou, tomou outro gole de cachaça e fumou de novo.

- Bibil, tu acha que o livro tem coisa com isso?

- Não sei, Neca, mas eu tô arrependido...

- Que jeito a gente tem pra dá...?

- Vamo ter que ler o livro de novo. Se já lemo de trás pra frente, vamo ler de novo, mas da frente pra trás, que aí desfaz o pacto.

- Tá certo antão... De noite a gente assobe...

Quando o Copacabana saiu do ar eles subiram, desta feita levando um aladim. Confortados e iluminados, eles procuraram o livro. Neca deu um grito quando viu a sarrapilheira estraçalhada.

- Bibil, meu Deus! Cadê o livro?

- Tava aqui na sarrapilheira, Neca!

Os dois começaram a revirar o entulho do forro procurando.

- Pode ter sido rato - disse Bibil. - Roeram a saca e carregaram. Tá aqui em algum lugar.

Ao olhar  de relance para o Neca, Bibil percebeu o amigo paralisado, olhando fixamente para um canto e balbuciando.

- Romina, Romina... - dizia lívido.

Bibil olhou na mesma direção e deu um grito de pavor. Romina estava descansando, enrolada num caibro, digerindo uma refeição recente. Algo retangular estava atravessado em sua goela.

- Ela comeu o livro! - berrou Bibil alucinado.

Neca perdeu o controle, esqueceu-se da dor e sacou a peixeira da bainha. Bibil pensou que era pra ele e que pagaria com a vida a ousadia de ter lido o livro de São Cipriano, mas quem sofreu na ponta da faca foi a jibóia do seu Soares. Não deu tempo de segurar o Neca.

Um pitiú invadiu o forro quando Neca abriu a Romina de cabo a rabo. De dentro dela retirou duas carcaças de rato e um paralelepípedo gosmento que havia sido o livro. Tentou ler, mas as páginas se desfaziam sob o efeito dos poderosos sucos gástricos do réptil.

- Não adianta... - gemeu o Bibil. - Tamo morto!

Neca deu um grito de raiva e atirou a carcaça longe. Atirou meio sem rumo e ela derrubou o aladim. Quebrado, querosene e fogo fizeram uma alquimia explosiva.

O fogo rapidamente correu sobre aquelas tábuas, ressecadas por anos seguidos de verão implacável. Bibil tirou a camisa e começou a bater, mas não vencia.

- Fogo, Neca! - berrou. - Te esperta, meu irmão e vamo enfrentar!

Nessas alturas, a fumaça já era visível da rua e gritos pediam socorro. Fizeram uma cobrinha do rio para o comércio e baldes de água passavam de mão em mão. Bibil e Neca desceram do forro, como se já tivessem visto o incêndio e tratavam de ajudar a apagar.

Não se perdeu grande coisa. Apenas o forro foi consumido pelas chamas. Pouca estiva estragada pela água e duas mantas de capivara roubadas na confusão. 

De manhã, depois de nova noite de perseguição, os dois se encontraram diante do comércio. Seu Soares tinha uma expressão sombria no rosto. Achara Romina aberta e carbonizada. Foi convencido pelo Bibil que a cobra poderia ter esbarrado num fio elétrico, provocando um curto circuito e a força da corrente havia liquidado o animal. O patrão estranhava tudo aquilo, observava demoradamente seus dois caixeiros mas não falava nada. Calou-se afinal.

Pequeno prejuízo, mas com a mercadoria salva logo daria pra recuperar o forro e o telhado. Tábuas novas de andiroba, telhas de barro, caibros de sucupira, frechal de acapú. Marinete, a nova jibóia, ganhou ninho e forro arejado.

Bibil e Neca passaram quase um mês de perseguição. Neca ficou estranho, parecia que estava endoidando. Depois de todo esse sofrimento Bibil teve a ideia de pedir outro livro pelo correio. Quando chegou, quase dois meses depois, já ia interar três meses de tormento. Mas sobreviveram.

Os dois foram até um matagal e lá mesmo leram de novo o livro. Depois da leitura, sentiram-se aliviados, a alma leve, o pacto desfeito. Festejaram bebendo e jogando até perto da meia noite.

No outro dia de manhã, pela primeira vez dormindo noite tranqüila depois de tanto tempo, Bibil e Neca matutaram sobre o destino a dar ao livro.

- Que tal se a gente ficar com ele e esconder...?

- Nem pensa nisso, Bibil. Tu viste o que aconteceu...

- Mas ele é poderoso...

- Nem mas, nem meio mas. Bibil, eu estou fora!

Neca foi tão incisivo que Bibil teve que concordar em dar um fim naquilo.

- Vamo queimar...?

- Não, Neca, esse livro não queima...

- Mas é de papel...

- Mas é poderoso, Neca. Tu viste...

- Então vamo dá pra Marinete comer...?

- Égua, Neca, naquele forro eu não subo mais...

- Vamo jogar no rio?

- A água ferve quando cai nele...

- Vamo meter numa sacola...

Fizeram assim e jogaram o livro no rio. Uma bolha de ar dentro do saco não deixou o pacote afundar, e ele saiu flutuando pelo Maratauíra.

Bibil se benzeu e rezou um credo.

- Todo homem tem cinco minutos de loucura por dia - filosofou Bibil. - Os meus se vão com esse livro...

Despediu-se de São Cipriano para nunca mais.


No rio Abaeté, levado pela correnteza, o livro encalhou diante de uma casa, no justo momento em que o caboclo descia pra sair com a montaria.

Entre curioso e intrigado, ele abriu o pacote e apanhou o livro. Não sabia ler, mas tinha um filho que formara-se professor em Belém e, sem emprego, estava passando um tempo no sítio tirando açaí.

O caboclo largou a montaria e entrou em casa carregando o livro de capa de couro preto com letras douradas...


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