Vozes do Além

         Era noite fria de fevereiro. 

Uma terça-feira gorda, em que dava para ouvir na cidade inteira a orquestra tocando marchinhas no Bancrévea. Norberto não poderia ir à festa naquela noite, embora o Caetano o tivesse chamado para ser o operador do Fantástico Bailar Bi-canal, aparelhagem que tocaria naquele baile.

As ruas em volta do prédio Lucídio Paes estavam desertas. Nenhuma viva alma passava por ali, naquelas horas domínio de ratos e morcegos, que circulavam livres hipnotizados pelo odor de gordura e sangue fresco vindos do mercado de carne. Um cheiro de maresia soprado por uma brisa suave subia do rio em direção à terra firme. Acolá o seu Contente lia um pouco à luz de um aladim brilhante. Mais adiante, sob uma marquise na penumbra, um casal tramava o amor às escondidas. No café do Guilherme armado em palafita dois gatos pingados e embriagados discutiam política em cima das águas escuras do rio. No bar do Nicola era noite de reunião da Sociedade Freudiana, e era possível acompanhar por sobre o baque do bilhar e os boleros um discurso inflamado do doutor Novaes, vociferado às cusparadas por entre a encanecida barba hirsuta, em defesa de interpretações psicanalíticas para a religião, o que horrorizava os frades, para quem a agremiação de intelectuais abaeteenses estava automaticamente excomungada. Nesses poucos lugares o sossego da noite ainda era perturbado por algum relampejo humano. Pelas ruas, porém, o silêncio era total.

Norberto estava perto da janela, debruçado sobre um amplificador aberto em cima da mesa. Forçava a vista, usando um par de óculos e uma lente de aumento. Deixara tocando baixinho um bolero, daqueles que o velho Bandute Sena costumava rodar depois das seis da tarde. O silêncio do estúdio à noite o incomodava, e ele o espantava com os discos do patrão.

Perto das onze horas, o vento começou a soprar mais forte. Foi nessa hora que ele ouviu a voz.

Parecia vir das profundezas do além, de muito longe. Mas era claramente perceptível.

- Amélia... Amélia... - dizia arrastada a voz.

Um frêmito o sacudiu de alto a baixo. Seus cabelos arrepiaram na nuca. Com um pulo ele encostou-se à parede, lutando para ter controle sobre si. Rezava para que fosse só a sua imaginação, mas não era. As janelas balançaram com o vento, e de muito longe ele ouviu novamente:

- Amélia... Amélia...

Aos tapas ele desligou tudo e saiu correndo. Suava frio, mas não gritava. Parecia ridículo, mas ele tinha ouvido. Não era dado a presepadas, era até bem racional, mas ouvira com tanta clareza a voz que parecia impossível uma alucinação.


De manhã bem cedinho, ele e o Clarimundo estavam no cemitério, diante de um túmulo antigo.

- Esta é a a dona Amélia... - disse o Clarimundo bocejando, bem no espírito da quarta-feira de cinzas chuvosa.

Norberto olhou a foto no medalhão de bronze e recuou apavorado.

- Olha! - berrou o Disc Jockey do Copacabana.

Clarimundo olhou mais de perto e viu o broche em forma de gramofone que dona Amélia usava quando tirara a fotografia. Levantou os óculos, forçou a visa mais de perto, murmurou algo. Fez afinal o sinal da cruz e foi sentar-se sobre uma lápide.

- Isso me tá parecendo coisa do outro mundo... - comentou pensativo. - A dona Amélia era boa gente, caridosa, com certeza não virou alma penada. O que a gente pode fazer é mandar rezar uma missa...

- O padre Vicente tá lá na oficina do Manolo - interrompeu Norberto. - Vi quando ele passou pra lá de manhã na bicicleta...

Foram até a oficina do Manolo e viram quando o padre ia saindo, empurrando a bicicleta com o pesado amplificador valvulado do sistema de som da igreja. Apertaram o passo e o pararam numa sombra.

Após ouvir a história o padre sorriu. Prometeu rezar a missa e recomendou orações pessoais aos dois. Clarimundo sugeriu uma libra de cera na sepultura e naquela noite dona Amélia dormiu iluminada o sono dos eleitos.  

Na mesma noite Norberto voltou a trabalhar no amplificador e apavorou-se novamente quando ouviu, vinda dos confins dos além, a mesma voz a murmurar tétrica: - Amélia...! Amélia...!

Como da vez anterior, saiu do estúdio em desabalada carreira, imaginando o que teria dado errado com a missa, as orações e as velas.


- Vamos esperar um pouco - disse o padre Vicente examinando com curiosidade e óculos de leitura uma válvula triodo amplificadora Philips E434 de cinqüenta watts. Era radioamador e ainda guardava seu transmissor do tempo da guerra. Maravilhava-se com os milagres da eletrônica e perguntava-se o que ainda haveria para se inventar. Recolocou a válvula no soquete, ligou o transformador e viu o filamento iluminar-se enquanto um amperímetro registrava a entrada em ação do amplificador que Norberto consertava.

- Não tem hora certa... - disse Norberto baixinho, olhando para cima, evitando a escada do sótão.

Clarimundo entrou no estúdio com três merendas do Gidonda. Abriu a sacola de papel sobre a mesa e retirou três caracóis e uma garrafa de Grapete, que distribuiu em três latas de leite moça bem limpas e batidas com cuidado para eliminar as bordas cortantes.

Comeram com voracidade, ouvindo boleros baixinho.

- Você contou ao Bandute o que está acontecendo? - perguntou o padre.

- Mas nunca! - exclamou Norberto taxativo. - Agora que ele tá metido nas reuniões do doutor Novaes, ele não acredita em nada, nem em Deus. Ele vai é dizer que eu tô doido...

Continuaram em silêncio, mas o incômodo começou quando veio o vento. Percebendo a janela vibrando Norberto levantou-se em alerta. Os três escutaram a voz, nitidamente chamado de muito longe: - Amélia...! Amélia...!

O padre agarrou os dois que já se preparavam para correr. Segurou pelos colarinhos um em cada mão, pedindo silêncio. Olhava para o teto, atento, ouvindo por sobre as duas respirações ofegantes a voz cavernosa a soar sinistra.

Percebendo que os dois não mais correriam, deixou-os tremendo no meio da sala e caminhou até a escadinha do sótão. Olhou para Norberto e apontou para cima. O disc jockey fez um movimento em negativa com a cabeça e puxou um terço do bolso. O padre sorriu, apanhou um aladim, acendeu e começou a subir.

Empurrou a portinhola do sótão, avançou os últimos degraus e sumiu no buraco, fazendo recuar a escuridão.

Lá em cima havia um cômodo peirento, baixo, bem próximo do telhado, cheio de coisas velhas. O aladim revelou pilhas e pilhas de discos de 78 rotações, cadeiras, mesa, uma cama quebrada, um baú antigo, cartazes de filmes pelas paredes, livros e alguns filmes do Natan que o velho Crispim provavelmente teria esquecido ali. Uma janela quebrada estava arriada sobre um gramofone antigo, com um disco esquecido no prato. Pela janela aberta era possível ver o rio refletindo uma língua de prata que a lua cheia colocava fora da boca da noite.

O padre colocou o aladim sobre a mesa e foi até a janela. O vento refrescante soprou-lhe sobre o rosto, balançou a bandeira da janela que apoiava-se sobre o disco e... a voz começou a chamar do além: - Amélia...! Amélia...!

Estava ali ao seu lado a origem do som. Colocando os óculos de leitura, o padre examinou o disco.

Lá embaixo, Norberto e Clarimundo ouviram uma sonora gargalhada. Depois escutaram sons mecânicos e em seguida começaram a ouvir o samba de Ataulfo Alves, Ai que saudades da Amélia.

Padre Vicente desceu rindo a escada com o lampião na mão, cantarolando com Ataulfo a história daquela que achava bonito não ter o que comer. O padre não conseguia conter o riso. Tomou um gole de Grapete quase se afogando e, ainda rindo, conduziu os dois para cima.

- Vejam aqui - explicou o padre ao lado do gramofone antigo. -  Esta janela quebrou a dobradiça de cima e arriou em cima deste disco velho que esqueceram neste gramofone, ficando presa só pela dobradiça de baixo. O disco estava na agulha, pronto para tocar e a janela podia oscilar livre. Quando o vento fazia ela balançar, - disse movimentado a janela - ela empurrava o disco para frente e para trás, que por coincidência estava com a agulha tocando a parte em que o Ataulfo falava a palavra Amélia. Era essa a voz misteriosa - finalizou o padre explodindo mais uma vez em sonora gargalhada.

Meio encabulados, os dois deram um sorriso amarelo e foram descendo à frente do padre. Este, feliz porque a fé e a ciência tinham mais uma vez vencido a superstição e o medo, empurrou a janela de volta para o caixilho, retirou o disco do gramofone, apanhou o aladim e desceu em seguida, trancando a portinhola.

Abriram uma garrafa de vinho e festejaram o fim do mistério ouvindo boleros até tarde da noite.

Lá em cima a janela vibrou um pouco com o vento, o mesmo vento que recusava-se a ficar lá fora e insinuava-se levemente por entre as telhas. O gramofone antigo tremeu, o braço saltou de seu descanso e a agulha ficou arrastando sobre o prato que girou depressa emitindo um chiado rouco, como se unhas de um enterrado vivo estivessem tentando romper com desespero a tampa do caixão. E foi assim até a mola do gramofone afrouxar-se plenamente e o disco diminuir de velocidade até parar.

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