CRÔNICAS DE ABAETÉ DO TOCANTINS - 15

 Abaeté do Tocantins: um retrato na parede














Finalmente, depois de muito pesquisar, consegui uma prova de que Abaeté do Tocantins existe. Nem que seja congelada em uma fotografia antiga. Fotografias, é claro, são construções sociotécnicas feitas pela luz quando refletem em algo. Neste caso, luziu nas barbas longas e nas vestes sóbrias dos missionários xaverianos em obra de evangelização pelos furos e igarapés, mais de meio século atrás, em 1961. Para ser possível gravar uma imagem sobre o filme algo deve ter acontecido diante da câmara. É o mais puro exemplo do conceito de "testemunha ocular". Meninos, eu não vi, mas a câmara viu. E registrou. Na parede do barquinho, acima das janelas, está gravado o nome: Prelasia (assim mesmo, com S) de ABAETÉ DO TOCANTINS. Aí está a minha cidade mágica, onde minhas histórias acontecem.

Em 1963, quando nasci, o município chamava-se Abaeté do Tocantins. Nesse ano o nome foi mudado para Abaetetuba, por obra do deputado João Reis e sugestão de um historiador, que à palavra Abaeté adicionou o sufixo "tuba", que quer dizer "lugar de abundância". Assim, Abaetetuba seria um "lugar de muitos homens ilustres...". Dois anos antes, portanto, a cidade chamava-se Abaeté do Tocantins, nome que a ligava ao grande e caudaloso rio amazônico e que, para mim, tem uma entonação poética e melancólica difícil de descrever. 

Em meu conto "Deolinda", o narrador, recém-chegado morador da cidade grande a descreve como um lugar tranquilo e silencioso. Dele, a descrição de uma tarde ensolarada de domingo evoca em mim uma memória sensorial inesquecível. 

Às vezes, nos arrumávamos para algum compromisso dominical. À missa, tinha ido pela manhã. Eu gostava da missa das 5 horas, antes da aurora, quando havia um solene torpor a nos envolver e enlevar. Quando coroinha, na velha Catedral, olhava aqueles senhoras e senhoras circunspectos, geralmente vestindo linho e tergal em cores sóbrias, carregando missais cheios de santinhos e recordações de missas de sétimo dia. Algumas daquelas senhoras cobriam-se com véus e carregavam rosários feitos com correntes metálicas e pedrarias brilhantes. Todos e todas, invariavelmente, tinham expressão sóbria - não necessariamente serena - nas faces, que pareciam amareladas e macilentas naquela luz fraca que mal iluminava o velho templo.

À tarde o "clima" mudava. A madrugada fria e vaporosa de Abaeté (que nessas alturas já era Abaetetuba) aos poucos ia dando lugar à canícula implacável, que atingia seu auge por volta das duas ou três da tarde. Pouco depois era a vez de uma brisa cálida começar a soprar e aos poucos ir arrefecendo o calor, antes de se tornar pouco a pouco o vento frio da Baía do Marajó a nos refrescar quando caía a noite. Nas tardes de  domingo, perto das quatro, havia o banho, o sabonete Phebo, a Seiva de Alfazema, o Artmatic de papai, perfume de adulto que ele trazia do Amazonas, no regatão. Mamãe vestia-se para sair, papai os sapatos de couro, a calça e a camisa engomada. E lá íamos nós, para nosso compromisso familiar. 

O calor, as essências que exalávamos, o cheiro de roupa limpa e engomada, os odores das ruas, de alguma fritura ao longe, de um mingau de farinha, de assados e cozidos. Quase não havia veículos circulando, alguns poucos pedestres, mangueiras plantadas pelas ruas nas primeiras décadas do século 20 farfalhavam sopradas pelo vento cada vez mais frio. Ao longe eu escutava um rádio transmitindo uma partida de futebol.

Se íamos para a praça, havia os brinquedos, se a visita era a algum parente distante, tinha o bolo com alguma bebida caseira, até mesmo algo fabricado localmente, como licor de jenipapo.

Naquela cidade, certa vez, um homem querido e bem quisto foi preso por alguma razão. Disse-me seu Alcimar Araújo que quando o pequeno cortejo policial que o levava para a prisão passava pelas ruas as portas e janelas eram silenciosamente fechadas, em sinal de respeito e em mudo protesto contra o que julgavam uma injustiça, embora talvez não o fosse.

Em abaeté do Tocantins acho que as noivas iam andando para casar de véu e grinalda na Catedral… Penso naquele cortejo. Era uma cidade muito pequena, que dispensava meios de transporte mais “modernos”. Não sei se elas iam sempre andando ou se alguém tivera imaginação para decorar uma carroça, transformando o veículo e seu cavalo em carruagem de conto de fadas. Ou se algum jipe ou rural de um endinheirado levou noivas às núpcias. Bicicletas? Talvez… 

Faltam-me os registros, imagens, depoimentos, cuja ausência tento preencher com conjecturas. Penso em alguma professora pianista, tocando depois do almoço para as ruas silenciosas. Imagino  as estações do ano demarcadas por cheiros da floresta e pelo aparecimento do açaí, do miriti, das mangas… estas, aliás, para mim têm um aroma de chuva que me é inesquecível, florindo e frutificando quando a invernada se apresentava. O sino da matriz, de sonoridade inconfundível para mim, soando perto de casa todo dia pelo menos três vezes, continua tocando em memória e me ressoando na imaginação.

Um poeta diria: eita vida besta, meu Deus… Outro, de igual ou maior envergadura, escreveria:

Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.


E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.


Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.


A cada pancada tua

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto

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