O QUARTO VERMELHO, de H. G. WELLS

Originalmente publicado em "Tales of wonder", de 1953, este conto foi republicado em edição brasileira no livro "As melhores histórias fantásticas de H. G. Wells", (Rio de Janeiro, Cátedra/Tempo e Espaço, 1976). É um primor de narrativa curta e, como boa obra de arte, permite muitas camadas de leitura. Pode simplemente seu uma história de fantasmas, que afinal se manifestam apagando velas em um quarto cercado de histórias. Pode ser também uma lição de moral para os incrédulos ou uma reflexão sobre como lendas se transformam em certezas. Mas, sobretudo, pode ser uma reflexão profunda sobre o medo, como diz o autor, que é coisa muito pior do que qualquer fantasma.



— GARANTO-LHE que, para me amedrontar, seria preciso um fantasma bem palpável. — Falei e fiquei de pé diante do fogo, com o meu copo na mão.

— É o senhor quem o quer, — disse o homem do braço paralítico olhando-me de través.

— Há vinte e oito anos que vivo e ainda não vi um fantasma.

A velha conservava-se sentada, com os olhos claros muito abertos, olhando fixamente para as chamas.

— Ora! — disse ela, — O senhor viveu vinte e oito anos e julgo que nunca viu uma casa semelhante a esta. Muita coisa tem ainda que ver quem só conta vinte é oito anos. Muita coisa que ver e que sofrer.

E falando, ela movia a cabeça lentamente. Suspeitei que os dois velhos procuravam aumentar, com a sua monótona insistência, os terrores que inspirava ao espírito a casa que habitavam. Pousei sobre a mesa O copo vazio e examinei o aposento em que nos achávamos: vi-me encolhido e ampliado até uma incrível corpulência no velho e esquisito espelho da extremidade da peça.

Pois bem! — disse eu, — se eu vir alguma coisa esta noite, só então me tornarei mais prudente, porque vou tentar a aventura sem a mínima ideia preconcebida.

— É o senhor quem o quer! — repetiu o homem do braço paralítico.

Ouvi o rumor de uma bengala, e um andar pesado e arrastado sobre a areia do passadiço exterior, e a porta rangeu nos gonzos; depois entrou um outro velho, mais curvado, mais enrugado, mais idoso ainda que os primeiros. Apoiava-se a uma única muleta e trazia os olhos protegidos por uma pala; pendia-lhe o lábio inferior, meio retorcido, de um róseo descorado, descobrindo os dentes estragados e amarelos. Dirigiu-se imediatamente para uma poltrona do outro lado da mesa, sentou-se descuidadamente e principiou a tossir. O homem do braço paralítico deitou sobre o recém-chegado um rápido olhar de positiva repugnância; a velha pareceu não dar pela sua chegada e continuou com os olhos fixos nas chamas.

— É como lhe digo... foi o senhor quem assim quis! — insistiu o homem do braço paralítico, quando a tosse do outro cessou por um instante.

— Sou eu quem assim quer, — respondi.

O homem da pala nos olhos reparou então na minha presença e voltou a cabeça para trás e para o lado a fim de me ver. Distingui um momento os seus olhos pequenos, brilhantes e inflamados. Depois de novo se pôs à tossir e a escarrar.

— Por que não bebe um pouco? — disse O homem do braço paralítico, chegando para junto do recém-chegado a garrafa de cerveja.

O homem da pala nos olhos encheu com braço trêmulo um copo, derramando outro tanto do líquido sobre a mesa de madeira branca. Uma sombra monstruosa se desenhou na parede, arremedando-lhe os gestos, quando ele se serviu da cerveja e bebeu. Devo confessar que não contava com aqueles grotescos guardiães. Na minha opinião, há na senilidade um não sei quê de não-humano, qualquer coisa rastejante e atávica; dir-se-ia que, de dia para dia, os característicos humanos se escapam dos anciãos. Aqueles três davam-me a impressão de doentes, com o seu silêncio de morte, o seu andar curvado, a evidente antipatia que manifestavam, não somente por mim, como também uns pelos outros.

— Se querem levar-me àquele quarto mal-assombrado, tratarei de me instalar nele confortavelmente, — disse eu.

O homem que tossia atirou para trás a cabeça com gesto tão brusco que estremeci ao vê-lo, e lançou-me, por baixo da pala protetora, nova mirada com seus olhos rubros: mas ninguém me respondeu. Aguardei uma resposta, examinando sucessivamente aquelas três personagens.

— Se quiserem, — repeti um pouco mais alto, — levar-me àquele quarto assombrado, poupar-lhes-ei o incômodo da minha presença.

— Há uma candeia em cima do aparador de junto da porta, disse o homem do braço paralítico, olhando-me para os pés — mas se o senhor for esta noite ao quarto vermelho...

— Esta noite entre todas as noites! — interrompeu a velha.

— Irá sozinho.

— Muito bem, — respondi — e que caminho devo seguir?

— Siga pelo passadiço, até chegar a uma porta que dá para uma escada em espiral. Suba por essa escada até um patamar que está diante de uma outra porta coberta de sarja. Entre por essa porta e siga até ao fim um longo corredor. O quarto vermelho fica à sua esquerda no alto dos degraus.

— Terei compreendido bem? — disse eu, e repeti aquelas instruções. Ele corrigiu um detalhe inexato.

— Mas, deveras, o senhor... vai lá? — perguntou o homem da pala nos olhos, fitando-me pela terceira vez com o mesmo balanço estranho da cabeça

— Esta noite entre todas as noites — disse a velha.

— Foi para isto que vim — respondi, encaminhando-me para a porta.

Nesse momento, levantou-se o velho da pala nos olhos, e deu volta à mesa tropeçando, de modo a aproximar-se dos outros e do fogo. Chegado à porta, voltei-me e vi-os todos três muito próximos uns dos outros, escuros, contra a claridade do fogão, olhando-me com uma expressão de sobressalto estampada nas fisionomias.

— Boa noite, — disse eu abrindo a porta.

— Foi o senhor quem assim quis, — repetiu o homem do braço paralítico.

Deixei a porta aberta até a candeia ficar bem acesa, depois fechei-a e adiantei-me pelo passadiço glacial e ressoante.

Confesso que a singularidade daqueles três velhos aposentados, ao cargo de quem a condessa deixara o castelo e a mobília antiga e enegrecida que se achava no aposento onde eles estavam reunidos, me impressionou fortemente, a despeito dos esforços que eu fazia para me conservar em um estado de espírito calmo e ponderado. Aqueles anciãos pareciam pertencer a uma outra idade, a uma idade mais remota, em que as coisas espirituais fossem outras, menos certas do que então, de uma idade em que se dava crédito aos presságios e às feiticeiras e em que não se podia negar a existência dos fantasmas. A própria existência deles era espectral; o talhe dos seus vestuários pertencia a uma moda nascida de um dos cérebros mortos. Os ornatos e as peças de uso daquele aposento tinham um cunho espectral, como de pessoas que antes visitavam o mundo do que dele participavam. Depois, fazendo um esforço, afastei essas ideias. Na longa passagem subterrânea soprava uma corrente de ar e a chama da candeia dançava, fazendo as sombras saltarem e tremerem. O eco ressoava na escada em espiral; uma sombra me seguia de rastos, uma outra fugiu diante de mim e se perdeu nas trevas. Cheguei ao patamar e detive-me um instante, escutando de onde partia um rumor que me parecera ter ouvido; depois, satisfeito por esse silêncio absoluto, puxei a porta coberta de sarja e fiquei imóvel à entrada do corredor.

Era um ambiente que de modo algum eu poderia esperar: porque a lua, entrando pela imensa janela da grande escada, fazia destacar-se cada coisa em sombra intensa ou em claridade aumentada. Tudo estava no seu lugar. Dir-se-ia que a casa tinha sido abandonada na véspera, quando se achava desabitada há dezoito meses. Havia ainda velas nos castiçais e a poeira que se amontoara sobre os tapetes e sobre o assoalho encerado, estendera-se tão uniformemente que era invisível à claridade da lua. Dei um passo para a frente e imediatamente recuei. Na antecâmara se erguia um grupo em bronze que a princípio ficara oculto por um ressalto da parede. Sua sombra se projetava com uma nitidez surpreendente sobre à almofada branca da porta, dando-me a impressão de alguém que me esperava de emboscada. Por meio minuto, talvez, fiquei petrificado. Depois, com a mão sobre O revólver que trazia no bolso, adiantei-me para reconhecer um Ganimedes e a águia cintilando à claridade da lua. Este incidente me acalmou por um instante os nervos e sobre uma mesinha com incrustações um chim de porcelana cuja cabeça baloiçou silenciosamente quando junto dele passei, nenhum temor me causou.

A porta do quarto vermelho e os degraus que à ele conduziam achavam-se em um recanto escuro. Antes de abrir a porta, voltei a candeia em todos os sentidos no intuito de me certificar sobre a natureza do lugar em que me achava. Lembrei-me de que fora ali que haviam encontrado o meu predecessor e a recordação dessa história me tornou de súbito apreensivo. Volvi por cima do ombro um olhar para o Ganimedes e abri bem apressadamente a porta do quarto vermelho, ainda meio voltado para o pálido silêncio do vestíbulo.

Entrei, tornei a fechar imediatamente a porta, dei volta à chave que encontrei na fechadura, pelo lado de dentro, levantei a candeia o mais alto que pude e examinei o cenário da minha vigília: o grande quarto vermelho do Castelo de Lorena, onde o jovem duque tinha sido morto; ou melhor, onde tinha principiado a sua agonia, pois que ele tinha podido abrir a porta e caíra estendido sobre os cinco degraus que eu acabava de subir. Tal havia sido o fim da sua vigília, da sua corajosa tentativa para triunfar da tradição que povoava de fantasmas o castelo, e jamais, pensei, a apoplexia secundara tão a propósito a superstição.

Havia ainda outras histórias mais antigas relativas àquele quarto, a começar pela que, incrível como fosse, parecia estar na origem de todas: a história de uma esposa tímida e do fim trágico que teve uma brincadeira do marido que queria amedrontá-la. Ao ver aquele vasto quarto escuro, com os tenebrosos vãos das suas janelas, com os seus recantos e as suas alcovas, compreendi que não poucas legendas tivessem surgido daqueles ângulos negros, daquelas trevas fecundas em terrores. A minha vela era uma pequena língua de chama, cuja claridade não chegava até o outro lado do quarto, e formava em volta um oceano de mistério.

Resolvi fazer imediatamente uma exploração sistemática do aposento e dissipar as ideias fantasistas que me sugeria aquela escuridão, antes que elas se apoderassem completamente de mim. Depois de me certificar de que a porta estava bem fechada, passei a inspecionar o aposento, rodeando os móveis um a um, arregaçando as cortinas do leito e afastando as tapeçarias. Levantei os estores e examinei as fechaduras de diversas janelas antes de fechar os postigos, pus-me de joelhos para sondar a negra abertura da chaminé, bati nas almofadas de carvalho antigo para ver se nelas descobria alguma saída secreta. Havia no quarto dois imensos espelhos, tendo de cada lado um par de candelabros de porcelana. Acendi todas aquelas velas, uma após outra.

O fogo estava preparado, — atenção que eu não esperava da parte do velho guarda, — acendi-o a fim de prevenir qualquer tendência a tremer de medo e, quando o vi bem pegado, voltei-lhe as costas para de novo examinar o quarto. Tinha eu arrastado uma poltrona forrada de chita e uma mesa, formando assim uma espécie de barricada na minha frente; sobre a mesa coloquei o meu revólver ao alcance da mão. O exame minucioso que eu fizera em todo o aposento tranquilizara-me um pouco; contudo, a escuridão dos pontos afastados do quarto e o silêncio completo me pareciam ainda muito estimulantes para a imaginação. O eco dos estalos e da crepitação do fogo não era de modo algum animador para mim. As sombras da alcova, e particularmente a do fundo, davam-me essa impressão indefinível de uma presença aí oculta, essa bizarra sugestão de uma coisa viva, à espreita, impressão que facilmente se apodera de quem se acha rodeado de silêncio e de solidão. Finalmente, para melhor me tranquilizar, peguei na vela, dirigindo-me até lá e convenci-me de que ali não havia coisa alguma tangível. Pus o castiçal sobre o assoalho da alcova e deixei ficar.

Achava-me nesse momento em um estado de extraordinária agitação interior, posto que não pudesse razoavelmente explicar a causa disso. Minha mente, no entanto, estava perfeitamente lúcida. Sustentava de mim para mim, sem a menor prova, que não era possível acontecer coisa alguma sobrenatural e, para passar o tempo, principiei a por em verso a legenda original do castelo. Declinei alguns versos em voz alta, mas o eco me foi desagradável. Pela mesma razão, abandonei também, passado algum tempo, uma conversação que travara comigo mesmo, sobre a impossibilidade dos fantasmas e dos espectros. Lembrei-me dos três velhos enfermiços que lá tinham ficado no seu cubículo, e tentei concentrar meu pensamento neles. Os sombrios tons vermelho e negro do quarto perturbavam-me. Mesmo com as sete velas acesas, a sala estava ainda escura. À da alcova achava se em uma corrente de ar e os movimentos da sua chama faziam saltitar e dançar constantemente as sombras e a penumbra. Procurando remediar aquelas trevas, lembrei-me das velas que eu tinha visto nos candelabros do vestíbulo e, fazendo um pequeno esforço, dirigi-me para fora. Conquanto houvesse luar, levei comigo uma vela acesa, deixando aberta a porta; voltei dentro em pouco trazendo mais dez velas. Coloquei-as nos bibelôs de porcelana que ornavam o quarto aqui e ali, acendi-as e tratei de dispô-las de modo a iluminarem os lugares em que era mais densa a escuridão, umas sobre o assoalho, outras nos vãos das janelas; enfim as minhas dezessete velas ficaram colocadas de modo tal que todos os recantos do quarto se acharam diretamente iluminados. Ocorreu-me que, assim que o fantasma entrasse, eu poderia avisá-lo de que não andasse por cima delas. E, pois, toda a vasta sala estava profusamente iluminada. Havia um quê de alegre e tranquilizador naquelas pequenas chamas rutilantes e eu me proporcionava a animadora sensação de que o tempo ia passando.

Mesmo em tais condições, a expectativa ameaçadora daquela vigília pesava atrozmente sobre mim. Foi após a meia-noite que de súbito se apagou a vela da alcova, ficando esta em completa escuridão. Eu não a tinha visto se apagar. Voltando-me despreocupadamente, vi tudo aí no escuro, e estremeci, como costumamos estremecer quando | damos pela presença inesperada de um desconhecido. — Deus meu! — exclamei em voz alta — esta corrente de ar está bastante forte!

Tomando dos fósforos que estavam em cima da mesa, atravessei o quarto e, com ar indiferente, fui de novo acender a vela. O primeiro fósforo não se inflamou, e, quando eu ia riscar o segundo, pareceu-me ver qualquer coisa tremeluzir sobre a parede, diante de mim.

— Voltei-me involuntariamente e reparei que as duas velas que se achavam em cima da mesa, junto à lareira estavam apagadas. Tornei a levantar-me imediatamente.

— É esquisito! — disse então — tê-las-ia eu mesmo apagado em um momento de abstração?

Voltei para junto da lareira, acendi novamente uma vela e, no mesmo instante, vi vacilar e apagar-se de todo uma outra que se achava no candelabro, à direita de um dos grandes espelhos; quase imediatamente o mesmo aconteceu à segunda. Não havia engano possível. A chama extinguiu-se como se os pavios tivessem sido inopinadamente comprimidos entre o polegar e o índice, ficando os mesmos inteiramente pretos sem se carbonizarem, nem deitarem a menor fumaça. Enquanto eu permanecia boquiaberto, apagou-se a vela colocada aos pés da cama e a escuridão pareceu dar um passo em direção a mim.

— É demais! — exclamei.

E logo, primeiro uma, depois a segunda vela das que estavam em cima da lareira igualmente se apagaram.

— Que é isto? — gritei, dando à voz uma entonação aguda e esquisita, que não pude reprimir.

Nesse momento apagou-se a vela que estava em cima da cômoda, e o mesmo aconteceu logo depois à que eu tinha acendido dentro da alcova.

— Pare com isto! Preciso destas velas! — exclamei meio em tom de pilhéria mas um tanto inquieto, ao mesmo tempo que riscava um fósforo para de novo acender as velas sobre a lareira.

Tremiam-me de tal modo as mãos que por duas vezes risquei o fósforo em um lugar da caixa muito diferente daquele onde devia fazê-lo. Na ocasião precisa em que o alto da chaminé emergia de novo do meio das trevas, eclipsaram-se duas velas colocadas no canto mais afastado da janela. Mas, com o mesmo fósforo, tornei a acender também as velas que estavam no chão e as que se achavam nos embutidos de um espelho, de maneira que por um momento pareceu-me adquirir vantagem sobre as luzes que se apagavam. Foi então que, de uma só vez, foram apagadas quatro velas em diferentes pontos do quarto, e eu, com ligeireza vertiginosa, acendi outro fósforo, hesitante e indeciso quanto à vela que devia acender primeiro.

Enquanto eu permanecia perplexo, pareceu-me que mão invisível apertava entre dois dedos as chamas das duas velas que estavam em cima da mesa. Dando um grito de terror, precipitei-me para a alcova, depois para um dos cantos da sala, depois para a janela, tornando a acender três velas, ao passo que se apagavam duas outras que estavam perto da lareira; em seguida, descobrindo um meio melhor, atirei os fósforos para cima de uma arca cintada de ferro e peguei em um dos castiçais; deste modo evitava a demora em riscar os fósforos: não obstante tudo isto, as velas continuavam a apagar-se com a mesma regularidade, e a escuridão, que eu mais temia, contra a qual lutava, aumentava e resvalava em volta de mim, ganhando terreno, ora de um, ora de outro lado. Era como uma nuvem de tempestade varrendo as estrelas. De vez em vez, uma vela mantinha-se acesa por alguns minutos, depois era apagada.

O horror das trevas crescentes invadia-me até o desvairamento e abandonava-me o sangue frio. Eu saltava, arquejante e desgrenhado, de uma para outra vela, lutando em vão contra o avanço implacável.

Machuquei a perna batendo de encontro à mesa. Deitei ao chão uma cadeira, tropecei e caí, arrastando comigo o pano que cobria a mesa. A vela que eu tinha na mão foi cair longe de mim e, erguendo-me, fui apanhar outra. De súbito, esta também se apagou, no momento em que eu a tirava de cima da mesa, talvez em virtude do movimento demasiado rápido que fiz ao arrebatá-la; e imediatamente se apagaram as duas velas que restavam acesas. Havia porém ainda luz no quarto, uma luz avermelhada que espancava a escuridão. A lareira! Sem dúvida eu podia ainda passar a minha vela entre as grades e acendê-la.

Voltei-me para onde as chamas ainda dançavam por entre os carvões incandescentes, espadanando reflexos vermelhos sobre os móveis: dei dois passos para a grade e, ato contínuo, as chamas diminuíram e extinguiram-se, o carvão ardente escureceu, os reflexos se recolheram e sumiram e, no momento em que eu metia a vela por entre as barras da grade, as trevas me rodearam, como um olho que se fecha, envolveram-me como num abraço sufocante, cegaram-me e aniquilaram no meu cérebro os últimos vestígios de raciocínio. A vela caiu-me das mãos. Estendi o braço em um vão esforço para repelir as trevas esmagadoras e, com toda a força dos meus pulmões, comecei a gritar — uma, duas, três vezes. Devo ter-me posto de pé aos cambaleios. Não sei bem. Só sei que de súbito me veio à ideia O corredor iluminado pela lua e, com à cabeça abaixada e Os braços para diante, mergulhe: na escuridão em direção à porta.

Todavia, esquecera-me em que lugar se achava exatamente e fui bater violentamente de encontro à cama. Cambaleei e, ao virar-me, fui empurrado ou me choquei inadvertidamente contra outro móvel pesado. Tenho uma vaga lembrança de haver rolado aos tropeções de um para outro lado no meio das trevas, de me haver debatido contra inúmeros obstáculos e de ter soltado gritos terríveis a cada novo choque e, por fim, de uma pancada violenta que recebi na testa, seguida de uma horrível sensação de queda que durou um século, do meu último e alucinado esforço para me conservar de pé. Depois disso, não me recordo de mais nada. 

Quando abri os olhos, era dia claro. Tinha a cabeça enfaixada toscamente e o homem do braço paralítico examinava-me o rosto. Olhei em torno de mim, buscando lembrar-me do que se havia passado e, durante algum tempo, não pude voltar a mim. Volvendo os olhos pelo ambiente que me cercava, avistei a velha da véspera que, não mais com o seu primitivo ar absorto, deitava em um copo algumas gotas de um líquido contido em um pequeno frasco azul. 

— Onde estou? — perguntei; — parece-me que os conheço e contudo não consigo me lembrar quem são...

Contaram-me o que se passara e ouvi-os falarem do Quarto Vermelho mal-assombrado, como quem ouve contar uma história. 

— Encontraram-no ao romper do dia, — disse o velho, — e tinha a testa e os lábios manchados de sangue.

Só muito lentamente foi que recobrei a memória do que me havia acontecido.

— E agora, — disse o velho — acredita que o quarto seja mal-assombrado?

Não me falava mais em tom de quem acolhe um intruso, mas como quem se aflige por ver o sofrimento de um amigo.

— Sim, — respondi — o quarto é mal-assombrado.

— Então o viu. E nós que aqui temos passado toda a nossa existência, nunca os nossos olhos o viram. Porque nunca nos atrevemos... Diga-nos se é realmente o velho conde que... 

— Não, — disse eu — não é ele.

— Bem que lhe falei, — observou a velha, com o copo na mão. — É a pobrezinha da jovem condessa que foi amedrontada...

— Não é ela também — disse eu. Não é nem o fantasma do conde nem o fantasma da condessa que estão nesse quarto. Não há fantasma nenhum, mas sim uma coisa pior, muito pior...

— Que é? — indagaram os dois.

— A pior de todas as coisas que assombram o pobre mortal — respondi — e essa coisa é simplesmente o Medo!

O Medo, que não quer luz nem ruído, que não tolera a razão, que torna o homem surdo e cego, e o domina. Ele me havia seguido no corredor, e travou luta comigo dentro do quarto...

Calei-me. Houve um intervalo de silêncio. Levei as mãos às ataduras que me envolviam a cabeça.

Então o homem que usava uma pala sobre os olhos suspirou e falou: — É isto, — disse ele. — Eu sabia que era isto. O Poder das Trevas. Atirar semelhante maldição sobre uma mulher! Ela ali ficará, para sempre. Quem quiser pode senti-la, mesmo durante o dia, mesmo no mais luminoso dia de verão, no papel de parede, nas cortinas, ocultando-se atrás da pessoa que ali vai, para qualquer lado que esta se volte. Quando a noite cai, ela resvala ao longo do corredor, para seguir o visitante, e este não ousa olhar para trás. É o Medo que mora naquele quarto de mulher...o medo sinistro. E ele ali permanecerá enquanto durar esta casa de perdição.

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