PRETINHOS...


- Mas nós somos pretos… Magros e pretos... - murmurou Benedito olhando para a procissão. - Eles se vestem todos de branco, são rosados, porcinos, opulentos… Nós somos os lázaros, vivemos do que ninguém quer, das sobras…

- Tá, cheiroso! - disse Zé, fazendo pouco-caso do que o intelectual do grupo dizia. - Atenção, por favor! - continuou elevando a voz, querendo parecer altivo e decidido para a plebe preta que o seguia. - A mãezinha vai passar bem perto de nós, como nunca passou! Vamos fazer nossa homenagem, como combinamos!

Benedito descobrira a leitura prestando atenção ao que havia nos jornais que os feirantes do ver-o-peso usavam para enrolar cheiro-verde. Aos poucos, aprendera, por qualquer dom inexplicável, a decifrar o que aquelas manchinhas pretas significavam sobre o papel. No começo pensava que eram manchas de betume amolecido que haviam espirrado do chão pressionado pelos pneus dos ônibus em desabalada carreira, quando faziam a curva e entravam diante da pedra do peixe. Depois, afinal, compreendera - e apreendera! - o universo mágico e infinito que se abria diante dele a partir daqueles sinais. Gostava de ficar no final da tarde lendo aqui e acolá, contemplando o entardecer, aspirando o apetitoso aroma que subia do solar da beira, da lavagem da feira, das geleiras da doca. Ficava por ali, como que mariscando algo, parando diante dos jornais espalhados pelo chão em desalinho, lendo o noticiário. Pouco importava que fossem notícias de alguns dias, às vezes semanas. Aquela, sobre o Círio diferente, fez-lhe matutar um bocado.

Zé, por seu lado, era expansivo, labioso e barulhento, ao contrário do introspectivo Bené. Líder nato, ganhava muita coisa no grito, embora sentisse gosto em dizer-se democrata. Apesar das diferenças, porém, eram grandes amigos. Quando percebia estivadores e arrumadores organizando-se para as homenagens à Virgem no Círio, começava ele também a organizar a homenagem da confraria dos pretos, como se identificavam. Reuniam-se em círculos enquanto passeavam, devagar, comentando sobre a festa que chegava, planejando novidades.

Foi Benedito quem teve a ideia, quando leu que a imagem seria levada para um voo sobre a cidade de Belém. No início acharam um absurdo, inclusive ele, já arrependido. Mesmo ali, na hora da homenagem, muitos ainda estavam tímidos, assustados pelo foguetório, incrédulos de que, afinal, ficariam tão próximos da Nazinha. Tudo começaria pela cidade velha, bem perto do ponto deles, no Ver-o-peso. Nos anos anteriores, desde que dona Branca inventara umas coreografias para eles e as haviam executado durante a passagem da romaria - com o foguetório dos estivadores e a sirene do porto soando alto – a homenagem não era notada. Afinal, como costumava lembrar Benedito, eles eram os pretinhos, os incômodos, aqueles que eram associados a pobreza, sujeira e desarranjo; os invisíveis. Desta vez seria diferente.

A novidade do sobrevoo de helicóptero pela cidade despertou ideias mágicas em dona Branca e no incrédulo Benedito.

Era um sonho? Seria possível aquilo?

- Vamos fazer assim, - organizara dona Branca na ocasião. - Quando a imagem for saindo faremos círculos em fila, cantando o Lírio Mimoso. Vamos ficar o mais perto possível e saudar nossa mãe lá do céu. Vamos abafar!

Agora estavam ali, uma multidão de pretos, esperando para começar a homenagem.

Benedito sentia o incômodo, cheio de cuíra. Mesmo já posicionado para começar, continuava duvidando que aquilo daria certo. Anos reconhecendo-se um lázaro haviam criado nele certo sentimento de muda exclusão, que o impediam de reivindicar cidadania até naquela ocasião, a de homenagear a padroeira com aquela manifestação de regozijo popular. Frequentara por um tempo o Rosário da Campina, dos homens pretos, e costumava ficar ali pela praça de vez em quando, anônimo e invisível, observando o movimento por perto, a decadência do velho centro histórico, os casarões emparedados em cimento ano após ano, os vincos no asfalto sobre o calçamento antigo que eram as rugas de velhice da cidade. Pensava muito sobre seu papel no mundo, sobre a teia de vida a que pertencia, sobre a indiferença de muitos na algaravia da cidade grande; sobre o sentimento de pertencimento a algo maior… Enfim, vivia filosofando. Sofrendo e filosofando.


**********


O piloto reportou, pelo rádio, certa preocupação com a revoada de urubus que os fogos haviam espantado no Ver-o-peso. As aves voavam em círculos sobre o mercado de ferro, com alguns se aproximando perigosamente do pier da Casa das Onze Janelas, onde o helicóptero aguardava para decolagem.

- Parece que vai chover… - disse um militar segurando um extintor de incêndio diante da máquina voadora. - Urubu sobrevoando, circulando…

- São espertos, - comentou o piloto. - Aproveitam as correntes de ar subindo para economizar energia e ficar planando sem esforço… Antes do homem aprender a voar eles já sabiam disso… - completou sorrindo.

A imagem peregrina chegou com toda pompa ao pier, nas mãos de um sacerdote alto e magro, que a conduzia com uma ruga de ansiedade, olhando para o céu azul profundo daquela manhã ensolarada de outubro, coalhado de urubus e de explosões.

Outra salva de fogos se fez ouvir, alvoroçando ainda mais os pássaros pretos. No meio deles uma garça solitária, que começara a desenvolver certo instinto de urubu, também planava em círculos, aproveitando as correntes ascendentes.

- Vamos lá, turma! - disse dona Branca, a garça, comandando os urubus. - Vamos para mais perto da mãezinha!

A urubuzada, os pretinhos, ao seu modo gritaram um viva e, destemidos até mesmo das intensas explosões de fogos por perto, lançaram-se em círculos cada vez menores em direção à imagem, cobrindo o pier com uma sombra negra e agitada. Começaram a cantar o Lírio Mimoso enquanto circulavam, com alguns indo às lágrimas pela beleza do que viviam ali.

Pafúncio, um tocador de viola que ficara famoso naquela história do sapo e da festa no céu, sacou seu instrumento e começou a dedilhar as cordas, acompanhando o secular hino. 

- E aí, Bené! - gritou Zé meio ofegante por sobre a barulheira. - Tu pensava que não ia dar certo? Agora eu quero é ver…! Olha nós, perto da mãezinha…! - e começou um longo parafuso, bem lento e aberto, quase um tunneau na vertical, gritando bem alto, tamanha era a felicidade.

Os pilotos retardavam a partida, esperando que os fogos diminuíssem e as aves, afinal, se acalmassem e retornassem aos telhados do Mercado de Peixe, às mangueiras da praça Pedro II, à cumeeira do Solar da Beira. Mas elas voavam em círculos bem perto do pier, 

Benedito veio pousar em uma árvore perto do helicóptero e ouviu a conversa apreensiva dos pilotos. Foi um choque. Eles não entenderam! Voltou depressa para onde estavam a dona Branca e o Zé, contando-lhes o ocorrido. A garça e o chefe do bando ouviram atônitos. Tristes, resolvem conduzir os pretinhos a se afastarem e aguardarem. Foi coincidência que nesse mesmo momento os fogos pararam de queimar e ninguém notou que a revoada cessava por vontade dos catartídeos.

O helicóptero decolou, afinal.

Eles voavam atrás, a certa distância. Dona Branca sugeriu um voo em formação, fazendo figuras no céu. Rosemiro, o fumante inveterado da turma, comentou que poderiam convocar um grupo de fumantes para, com charutos, escreverem no céu alguma coisa. É uma boa ideia, mas em razão da dificuldade de se organizar tudo e conseguir os charutos, ficaria para o ano que vem.

E assim foi.

O helicóptero decolou com a imagem da Virgem, foi visto em toda a cidade, pairou sobre lugares de provas e expiações, houve chuva de pétalas de rosas, bênçãos e orações.

Feita a homenagem, aos poucos os pretinhos se afastaram e foram pousando mais longe, cada um na sua dormida. A maioria parou um instante na Pedra do Peixe para uma breve refeição antes de seguir viagem. Alguns até voltaram para Ponta de Pedras depois de reverem parentes na capital. Felizes, deram como bem-sucedida a homenagem e dona Branca exausta, que garça não é urubu, voltou para uma lagoa no Mangal, onde se refrescou e começou a maquinar o ano que vem.  

Claro, somente dona Branca e os pretinhos entenderam tudo aquilo... 

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